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quarta-feira, 24 de junho de 2009

SOBRE O PERDÃO

Já se popularizou a ideia de que perdoar faz bem à saúde.
No entanto, devemos ter cuidado ao acatar tal pensamento como verdade absoluta, sob pena, por exemplo, de somarmos algum tipo de culpa à dor de nossos doentes.
A palavra com a qual nos deparamos então é “relatividade”. Auxiliados por esse conceito, podemos compreender que pessoas que saibam perdoar possam adoecer, da mesma forma que os que odeiam possam morrer aos cem anos, ainda com boa saúde, num acidente qualquer.
Por outro lado, talvez aconteça, sim, que os “perdoadores” tenham os sintomas de qualquer moléstia amainados pela pureza de seus corações, que, de quebra, ainda lhes proporciona uma maneira peculiar de encarar os percalços pelos quais tenham de passar; enquanto os “acusadores” talvez sofram muito até em vista das pequenas mazelas, momentos nos quais parecem mostrar-se ainda mais longe do difícil exercício da arte de perdoar.
Penso que perdoadores de verdade sejam poucos e todos de um só e simples tipo: per-do-a-do-res. Quanto aos acusadores, atribuo-lhes muitos matizes, entre os extremos daquele que cultiva diariamente o ódio nas próprias entranhas, e o que se debate o tempo todo em busca de alívio para a dor e a mágoa que, debalde, tenta arrancar do peito angustiado.
É nesse último tipo que penso enquanto tento falar sobre o assunto, partindo do princípio de que aqueles que nele se incluem já concluíram ser mil vezes preferível perdoar do que passar a vida acusando, e estão fazendo todo o possível para se transformarem em perdoadores.

Perdoar de verdade é muito difícil. Principalmente se temos a impressão de que fomos atingidos, de que tivemos nossas vidas irremediavelmente desviadas de algum curso imaginado ideal, única e exclusivamente pela ação ou omissão de alguém. Mais difícil ainda se atribuímos a esse alguém alguma responsabilidade sobre nossa vida.
Não deve ser por outra razão que os consultórios dos psicanalistas estão cheios de neuróticos a desfiarem um rolo sem fim de queixas sobre a mamãe e o papai. Afinal, eles tinham ou não tinham obrigação de acertar?
E estava eu pensando no assunto, quando me deparei com as entrevistas, na televisão, de dois deficientes físicos - animados praticantes de uma modalidade de surfe.
Um deles havia perdido os movimentos das pernas por causa de uma bala perdida; o outro, depois de um acidente de moto, pelo que entendi, provocado pela má conservação da estrada...
De repente, o estalo recorrente, cada vez mais nítido: estamos todos igualmente à mercê da irresponsabilidade administrativa que permite o uso de uma estrada perigosa, ou das sérias questões sociais, que envolvem tantas responsabilidades e acabam por culminar num sem número de tiroteios dos quais todos os dias temos notícias. Ora uns são atingidos; ora outros... E ainda quando pareça que fomos poupados, sabemos que continuamos à mercê...

Prestei mais atenção aos jovens focalizados na tela.
Era evidente que pareciam haver perdoado mais rapidamente aos amorfos responsáveis pela mudança drástica em suas vidas do que muitos de nós conseguem perdoar uma atitude do pai ou da mãe que nos haja de algum modo marcado.
Provavelmente, porque, enquanto os primeiros foram vítimas de espécies de crimes sociais, dos quais, ainda que identificados o atirador e o administrador envolvidos, a culpa propriamente dita permanece um tanto difusa; tendemos a perceber as ações de nossos genitores como frutos de decisões conscientes e voluntárias...
Um dito popular conhecido, segundo o qual “somos todos vítimas de vítimas” invade meu pensamento... Talvez devêssemos encarar nossos pais e mães ( e as demais criaturas ) como a nós próprios: possíveis vítimas de qualquer doença, dos buracos das estradas, das balas perdidas e... dos erros dos próprios pais... Além de, também como nós, definitivamente solidários em nossa responsabilidade diante de qualquer ação ou omissão de cada ser humano.
É provável que um perdoador nato pense assim, ou sinta assim. É provável que ele perceba desde sempre o quanto as ações que nos atingem podem não ter um caráter pessoal, contra nós. Como impulsos inconscientes, seriam tais ações, de certa forma, espécie de balas perdidas...
E, ao pensar assim, o perdoador libera a si mesmo do processo em que vive o coração do acusador que deseja tornar-se um perdoador; libera-se das centenas de sessões de conciliação e julgamento; com veredictos a se alternarem exaustivamente: condenações e absolvições sem fim, posto que em matéria tão movediça, como o são as questões humanas, talvez seja impossível encontrar-se a última palavra.
Mas é ela que o aspirante a perdoador busca obsessivamente... Até que, de repente, ele parece desistir.
É quando a palavra vai até ele. Mas ele precisa continuar imóvel, pois a qualquer menção que faça nos sentido de capturá-la para lhe dar um significado, ela lhe escapará...
Essa palavra é "aceitação".
Aceitação do absurdo da condição humana... Aceitação de nós mesmos e de nossa permanente vulnerabilidade às ações e omissões nossas e dos demais seres humanos: o rumo de nossa vida sempre pode mudar... Aceitação de que cada um de nós, a qualquer momento, pode ser vítima de pequenas e grandes injustiças... Aceitação de nossos limites, e do fato de que é impossível determinar com certeza os culpados por seu delineamento... Aceitação de nossa parcela de responsabilidade diante de tudo o que acontece conosco e com a humanidade... Aceitação das coisas exatamente como estão, das pessoas como foram ou ainda são... Aceitação de que não haja uma exata definição para cada coisa, para cada pessoa, para cada gesto... Aceitação da possibilidade de havermos demorado a aprender a perdoar... Aceitação da necessidade de pedirmos perdão... Aceitação do fato de que, ainda que façamos o nosso melhor possível, pode ser que não consigamos melhorar certas coisas... Aceitação de que, mesmo assim, precisamos tentar...
Talvez seja nesse momento que, subitamente, o aspirante se veja em estado de graça... Ele aprendeu a perdoar.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

MARGARIDA

Foi nesse domingo que caiu a ficha sobre a morte de Margarida.
Olhava aquela natureza generosa à orla da praia quando me dei conta de que ela, que amava caminhar no calçadão, já não podia desfrutar de tal alegria.
Conheci Margarida quando uma amiga ma apresentou, em busca que estava ela de alguém que fizesse uma primeira revisão do livro do filho querido, prestes a retornar da viagem de estudos à Rússia, na época da Perestròika.
A admiração veio fácil: boa mãe, boa esposa, preocupada com as causas sociais, adepta da vida saudável, e, acima de tudo, uma pessoa bem humorada, apaixonada pela vida, pelas pessoas de modo geral. Sempre pronta a uma atenção, a uma delicadeza.
Não aparentava a idade que tinha. Mesmo quando o marido adoeceu e precisou se desdobrar em cuidados, manteve a aparência jovem e bem tratada. Manteve a tranqüilidade de espírito daqueles que sabem que o que realmente importa se esconde por trás dos eventos cotidianos da existência humana.
Víamo-nos sempre, pelas ruas do bairro, envolvidas, cada uma, com seus afazeres, mas não deixávamos de trocar notícias. E ela parecia invariável e sinceramente torcer para que tudo desse certo caso lhe falasse de algum projeto em andamento, da mesma forma que vibrava se lhe acenava com alguma espécie de vitória.
Um dia, encontrei Margarida abatida, com um lenço na cabeça a esconder a perda óbvia dos cabelos: estava doente.
Confesso que, para mim, foi um choque percebê-la, como qualquer um de nós, vulnerável... Falou-me um pouco sobre como descobrira a existência do tumor já em estado adiantado... E, embora nada nela indicasse qualquer tipo de abatimento moral ou revolta, senti-me na obrigação de lhe dar meu apoio; de lhe confirmar minha amizade, e a convidei para um café, na semana seguinte, em sua padaria preferida.
Nesse dia, enquanto comíamos e ela apreciava o sabor do chá com o cuidado daqueles que têm tempo de se despedir de cada pequena coisa, eu lhe dei de presente o livro “O Poder do Silêncio”, do Eckhart Tolle, acreditando que naquelas páginas ela poderia encontrar consolo para o que quer que fosse que ainda estivesse por enfrentar.
Mas Margarida não precisava de qualquer consolo, creiam. Foi ela que, a cada vez que nos encontramos, sempre pelas esquinas, nos meses que se seguiram, continuou a me dar belíssimas lições de vida e de humanidade.
Imaginem que, em algumas das vezes em que a encontrei depois daquele lanche, ela simplesmente evitou o meu abraço, explicando que vinha de uma das aplicações do tratamento ao qual se submetia, e que a radioatividade concentrada em seu corpo poderia me fazer mal... E isso me impressionava! Nunca vira outra pessoa em suas condições tão preocupada em preservar... o outro...
Mas Margarida talvez intuísse que seria justamente no outro, nos outros, que ela residiria para sempre... E foi assim que admirei ainda mais intensamente a bela natureza que me cercava naquela linda manhã de domingo - meio outono, meio inverno -, e, em “silêncio”, celebrei, no presente que se eterniza quando nele nos colocamos, a eternidade de Margarida.

"Homossexuais, sim. Hipócritas, não" - aos leitores

Em um país no qual legislar em causa própria parece ser a regra, não é estranho que alguém, não me conhecendo, haja pensado, em vista de meu texto “Homossexuais, sim. Hipócritas, não”, que estivesse defendendo minha própria natureza.
Imagino que se fosse homossexual não tivesse qualquer problema em assumi-lo, uma vez que tendo – mesmo -, a encarar a condição sexual das pessoas da mesma maneira que, por exemplo, a sua naturalidade ( carioca, paulista etc. ); além de ter clareza sobre o indiscutível fato de que o caráter de um indivíduo não está diretamente associado a sua condição feminina, homossexual ou masculina. Conheço e amo pessoas maravilhosas de todos os sexos, da mesma forma que tenho notícias de verdadeiras aberrações humanas entre homens, homossexuais e mulheres, dos quais prefiro manter distância.
Assim, apenas para garantir a força de um texto produzido sem quaisquer motivações umbilicais e para evitar qualquer mal entendido, vai aí minha declaração formal: eu sou heterossexual.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

ÜBER - LUIS SALEM

Sabemos que ainda hoje a comédia é tida como obra menor, de caráter popular, sendo a tragédia ou drama o gênero respeitado para tratar com seriedade das grandes questões humanas.
Inúmeras fontes nos falam de que, ao banalizar sensível e inteligentemente aquilo que nos possa ser de alguma forma ameaçador, as melhores comédias nos fazem rir. Algumas, e esse é o caso do texto de Luis Salem - "über", por isso -, conseguem promover dentro de nós um movimento de saída do trágico para o cômico - e o riso fácil, com retorno imediato, no entanto, já à porta do teatro, para a seriedade das questões abordadas.
As melhores sátiras são sem dúvida aquelas que não deixam claro de pronto se estamos diante de uma apologia ou de uma ironia em relação a determinado aspecto ou comportamento do ser humano. Aquelas em torno dos personagens a darem o ar de sua graça na peça “Über – a Comédia", além de serem desse tipo, rejeitam qualquer tom paternalista ou elitista, ao caracterizarem fatias da vida e do caráter daqueles que, representantes de quaisquer classes sociais, não se importem com o que tenham de fazer em nome do desejo de ser... "über".
Não podemos deixar de mencionar o bom desempenho da dupla de atores e o olhar acolhedor de Salem, dentro e fora do palco: “sem censura”, como diria Leda Nagle, uma das bem administradas participações através de vídeo.

domingo, 14 de junho de 2009

DANÇA CIRCULAR

Acabei de ler a dissertação de mestrado da amiga Sílvia, sobre a dança, e fiquei impressionada com a poesia que perpassa todo o seu texto, que nos remete à filosofia, à filosofia oriental, à física quântica...
Sempre percebi a dança, a música, todas as artes, enfim, por analogia com a literatura – minha paixão, como importantes meios de acesso a nosso interior e, por conseguinte, a uma espécie de comunhão com cada outro ser humano... e com o Universo...
Mas nunca aprendi a dançar...
Um pouco por causa da asma, um pouco pelo superego muito crítico, o fato é que a vida inteira minha dança consistiu apenas em brincar com as palavras no papel...
No entanto, de repente, diante do belíssimo trabalho de minha recente amiga, percebi que a dança poderia ser algo de suma importância na vida dos homens... Indispensável mesmo...
A imagem do dançarino formando UM com a dança, criador e criação, o tempo todo presente na pesquisa de Sílvia, me remete àquela questão esotérica da comunhão entre o observador e a coisa observada, que acaba por nos lançar na certeza de que somos um em Deus...
"A eternidade no momento é a impermanência", diz ela... Pois é justamente a sucessão permanente de movimentos que imobiliza...
E somos levados a compreender que, além de se expandir no espaço, concentrando todo ele, ao final, em um só ponto, a dança também sintetiza passado, presente e futuro, constituindo-se na própria eternidade.
Lindo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
E foi assim que, ao receber convite para participar de um encontro de “dança circular”, que, entre outras coisas, mencionava a não necessidade de “sabermos” dançar..., eu resolvi participar.
Gente, que delícia! Um momento de alegria, de brincadeira, de integração...
E vejam: é natural que associemos a palavra “harmonia” a algo assim como um “tudo dando certo”... Dessa forma, ao nos imaginarmos numa dança, em busca dessa harmonia, talvez nos venha o pensamento de que precisamos acertar o passo de imediato, sob pena de sermos culpados do estabelecimento de alguma espécie de “caos”, ali, onde imaginamos talvez uma ordem previamente estabelecida à qual devêssemos nos encaixar...
Mas não: na dança circular, nossos “erros” são assimilados pelo grupo, pelo círculo, e você retoma a cada passo a certeza de pertencer àquele momento.
Nossos “descompassos”, ao serem alegremente inseridos naquela dança em grupo, se tornam a chance mesma da criação de uma nova harmonia.
A impressão que tive, ao lado da Denise, professora a nos orientar com muita sensibilidade, e dos demais participantes, foi de que a relação erro/acerto havia sido definitivamente transformada na variedade, na multiplicidade de possibilidades a caracterizar o estar do homem no mundo e na vida.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

UNIDADE

Sempre que resolvo falar em “unidade”, referindo-me à percepção de sermos partes, cada um de nós, de um todo uno, e digo que a psicanálise me ajudou muito a aprofundar tal consciência, deparo-me, de um lado, com o preconceito dos que buscam nessa ciência uma espécie de individualidade a separá-los definitivamente dos demais - temerosos de um certo caráter esquizofrênico atribuído a qualquer ideia de unidade; e, de outro, com o carinho daqueles já muito adiantados no caminho espiritual, e que anteveem a unidade última e final com aquela essência primordial do mundo do não manifesto, a me mostrarem o quanto a unidade de que falo é precária diante do absoluto por nós impossível de ser descrito, e o como a psicanálise pode ser fomentadora do ego-ísmo.
De modo geral, estes últimos, talvez por acessarem seus recôndidos departamentos interiores através de uma desenvolvida intuição, apenas olharam superficialmente para a psicanálise, vendo-a como ferramenta fortalecedora dos individualismos ( por voltar-se às questões do "eu"), e duvidam do crédito que atribuo a essa prática.
Quanto aos primeiros, pensam buscar, nos consultórios de seus analistas, tão somente o desenho de suas personalidades, esquecendo-se de que, quanto mais se aproximem de si mesmos, mais perto estarão de cada outro ser humano.
Na verdade, gosto de pensar que a psicanálise e o sentimento da unidade, ao invés de se chocarem, possam se complementar. Pelo menos, em um primeiro estágio, na direção de uma libertadora e consciente espiritualidade.
Imaginemos, por exemplo, um quebra-cabeças do mapa do Brasil, em que cada um de nossos Estados seja uma pecinha-estado a ser encaixada para formar o todo-Brasil. Não será difícil descobrir que, quanto melhor delineadas as diferenças, entre reentrâncias e protuberâncias, de cada uma de suas peças, melhor será seu encaixe.
Da mesma forma, no que se refira à humanidade: para que cada um de nós possa encontrar a melhor maneira de se desenvolver e de ser verdadeiramente útil à sociedade, será absolutamente necessário que, antes do encaixe ( que não representa anulação negativa da parte, mas sua otimização no todo ), procure, através do autoconhecimento ( incluindo-se aí a possibilidade da psicanálise ), delinear marcadamente seus contornos e suas peculiaridades.

Segundo Teilhard de Chardin:

“A Saída do Mundo, as portas do futuro, a entrada no Super-Humano, não se abrem para diante a alguns privilegiados apenas, nem a um só povo eleito entre todos os povos!
Elas não cederão senão a um empurrão de todos juntos, numa direção em que todos juntos se podem reunir e completar numa renovação espiritual da Terra.”

E, se dessa leitura ainda não extraímos a certeza de que o pensador esteja falando da possibilidade de sermos, ao mesmo tempo, cada um em todos e todos em cada um, fiquemos com o que diz aqui:

“Seja em que domínio for – quer se trate das células de um corpo, ou dos membros de uma sociedade, ou dos elementos de uma síntese espiritual – a União diferencia. As partes aperfeiçoam-se e completam-se em qualquer conjunto organizado. Foi por termos descurado esta regra universal que tantos Panteísmos nos transviaram no culto de um Grande todo em que os indivíduos se perderiam como uma gota de sal, no mar.
Aplicada ao caso das somas das consciências, A Lei da União livra-nos desta perigosa e sempre renascente ilusão. Não, ao confluírem segundo a linha dos seus centros, os grãos de consciências não tendem a perder os seus contornos e a misturar-se. Acentuam, pelo contrário, a profundidade e a incomunicabilidade de seu ego.
Quanto mais se tornam, todos juntos, o Outro, mais se acham ‘eles mesmos’.”

domingo, 7 de junho de 2009

Carta aos familiares das vítimas do AIRBUS 447

Assim que sabemos da ocorrência de algum acidente aéreo de grandes proporções, principalmente se tínhamos pessoas queridas dentro de algum avião naquele momento, experimentamos um indescritível sentimento de gratidão àquele Deus que nos poupara da dor daquelas pessoas todas que, de repente, se veem notícia no jornal, na internet, na televisão...
Logo depois, porém, até porque, no fundo, sabemo-nos não mais - ou menos - merecedores da proteção Divina do que os diretamente atingidos por qualquer desgraça, percebemos que aquela espécie de alívio inicial vai se transformando em solidariedade.
Em uma solidariedade que não é só fruto de nossa capacidade de nos colocarmos no sofrimento alheio, mas também vinda daquela certeza assustadora de que, se desta vez fomos poupados, continuamos, no entanto, à mercê da possibilidade de, a qualquer momento, nos vermos protagonistas de tragédia semelhante àquela da qual, por ora, silenciosamente, agradecemos ser apenas chocados espectadores.
E é assim que me vejo revoltada por imaginar que, como frágeis prisioneiros da condição humana, tenhamos de estar sujeitos - além de a acidentes deveras imprevisíveis e a doenças comuns - aos infortúnios a nós impostos pelas falhas, de antemão conhecidas e não evitadas, das grandes corporações...
Em relação ao acidente com o AIRBUS, A330, voo 447, que levava 228 de nós, seres humanos; 57 de nós, brasileiros; e 7 de nós, niteroienses, ouvimos falar de sua possível relação com problemas no tipo de sensor de velocidade utilizado por esse modelo de avião. E isso mais de um ano após haverem constatado a necessidade da troca dessa peça, tendo-se em vista os riscos por ela impostos à segurança dos voos. E, se ouvimos isso, fico imaginando aquilo de que possivelmente, dados os interesses envolvidos, jamais teremos notícias...
E eu pergunto a vocês: já assistiram ao documentário The Corporation ( se estou fazendo propaganda, creiam, é gratuita )?
Pois esse documentário nos mostra o quanto cada um de nós é atingido pelas ações das grandes corporações; por seu desejo de lucro incontrolável, muitas vezes garantido através de decisões que não levam em conta a segurança da população; por sua completa inconsciência quanto aos valores humanos...
E isso, completamente protegidas por uma identidade surreal, que é seu logotipo, sua marca...
The Corporation mostra também como as grandes empresas conquistaram o mesmo direito ao tratamento humano concedido a todos pela 14ª emenda ( trata do direito à vida, liberdade e propriedade ), que visava a princípio a proteção do negro na tradicionalmente racista sociedade americana, e que foi invocada pelos advogados dessas corporações quando lhes interessou. Deixando claro, assim, que são mais protegidas tais criaturas do que qualquer ser humano: protegidas pela lei que lhes garante tratamento humano quando é de seu interesse; e, por outro lado, ao serem pegas em falta grave, não podendo ser penalizadas com a cadeia, como aconteceria se pessoas de carne e osso de fato fossem.
Vejam: nenhum de seus sócios ou acionistas é responsabilizado criminalmente, seja qual for a barbaridade cometida!
E pasmem: no máximo, estas empresas são obrigadas a multas e indenizações completamente dentro daquilo que previram e que muitas até escolheram, calculadamente ( “para o caso de alguma coisa dar errado” ), tendo em vista o lucro maior advindo, por exemplo, da burla a seu próprio regulamento ( ao adiamento de alguma medida necessária? ).
Dessa forma, embora saiba que a dor da perda de alguém querido não tenha preço, sugiro que os parentes das vítimas desse bárbaro acidente aéreo pautem suas ações - sem escrúpulos do tipo “o dinheiro não trará Fulano(a) de volta” - no sentido de exigirem, ao mesmo tempo e incansavelmente, esclarecimentos sobre o que de fato ocorreu e indenizações o mais grandiosas possível.
Pois, se, como há indícios, a empresa aérea houver agido levianamente no que se refira à segurança dos passageiros, segundo aprendemos com The Corporation, a única maneira de atingi-la será tocar na única coisa que empresas assim, à imagem de qualquer psicopata, valorizam: seu lucro.
E o que fazer com tais indenizações?
Bem, há quase trinta anos, uma pessoa que eu amava desapareceu.
E pensar que para sempre teria de conviver com a ideia de que ela poderia estar em qualquer lugar do mundo, simplesmente revolucionou meu modo de encarar o meu próprio estar nesse mundo. Foi quando me senti parte integrada de um todo, de algo muito maior do que eu.
Maluquice? Talvez. Mas foi me saber parte do mesmo todo com aquele que eu amava, vivo ou morto, que me deu forças para sobreviver à sua posteriormente constatada morte. E nunca mais perdi aquela sensação de unidade experimentada pela primeira vez nos dias mais terríveis de toda a minha vida.
Assim, sinto-me à vontade para pedir que imaginem seus queridos como partes integradas ao planeta e a cada um de nós, enquanto partes do cosmos - quantos não escolhem em vida ver suas cinzas jogadas ao mar por experimentarem, em algum nível, essa dimensão?
E, creiam, podendo ver através de nossos olhos, eles agradecerão que suas indenizações sejam usadas na luta por um mundo ( do qual não podemos ter a ilusão - possível com os "vivos" - de separar nossos queridos que se foram ) melhor; na luta para mudar a realidade denunciada por The Corporation - e da qual podemos inferir a terrível possibilidade de desastres aéreos ocasionados pela ganância.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Antigamente, dizia-se: "pessoas sem personalidade"

Numa festa ligada à literatura, na qual a presença de muitas autoridades respeitadas na cidade se fez notar, presenciei o gesto infame do amigo instalado ao meu lado.
Foi com um quase imperceptível movimento de cabeça que cumprimentou o rapaz com o qual toda semana, eu sabia, jogava bola e bebia "pra esquecer a derrota ou comemorar a vitória" do time da empresa onde ambos trabalham - ele, alto executivo; o rapaz, simples auxiliar...
Provavelmente sem entender o que acontecia, ele, a vítima da tola vaidade humana ali corporificada, ainda tentou se aproximar, mas foi rechaçado abruptamente pelo colega, que se dirigiu ao banheiro, como se fugisse de uma doença contagiosa.
Sem graça, fui gentil e disse à pessoa confusa, à minha frente, que seu parceiro das quartas-feiras não estava passando muito bem.
Mais ressabiado do que aliviado, o menino acomodou-se do outro lado da sala...
E não é que, quando, no transcorrer da festividade, fica evidente a simpatia do homenageado pelo zagueiro desprezado, meu colega tem coragem de mudar completamente sua postura em relação ao, de repente, assumido "companheiro"?
E foi para que, a partir de minha própria escala de valores, eu não viesse a agir - com aquele que já me via interiormente chamando de simples conhecido - da mesma maneira que ele o fizera com o parceiro de tantos anos, que me vi na obrigação de lhe dizer, palavra por palavra, o que pensava de seu comportamento:
"Nunca consegui entender aquelas pessoas que, chegadas, por exemplo, a um evento importante, e ali encontrando uma pessoa com a qual mantenha um bom relacionamento em algum setor de sua vida, comportam-se, em relação a ela, de maneira cuidadosa, diferente, aguardando, talvez, para ter certeza do quão bem quista seja pelos demais ali presentes.
Não consigo entender e abomino tal comportamento que, além de medíocre, em última análise, talvez denuncie algum tipo de complexo de inferioridade. Pois o que importa se Fulano ou Beltrano respeita ou detesta alguém com o qual eu, por minha vez, tenha alguma afinidade? Por que não deveria impor aos que me rodeiam o respeito que sinta por aqueles que elegi para o meu rol de amizades, levando em conta aquilo que, dentro de MINHA escala de valores, seja importante?
Ser capazes de reagir a cada próximo apenas em função daquilo que ele represente de fato e diretamente em nossa vida, e a partir exclusivamente de nossas próprias impressões a seu respeito é o que podemos esperar de nós mesmos, se nos queremos pessoas maduras e inteiras. Ou simplesmente nos assumamos como desprezíveis 'pessoas sem personalidade'."

Barack Obama no Cairo

Mais uma vez o presidente dos Estados Unidos me deixa arrepiada.
O fato de ser filho de um muçulmano teria influenciado Obama, levando-o, em seu discurso no Cairo, a assumir-se favorável à criação de um Estado Palestino?
Seria humano se assim fosse.
No entanto, tendo-se em vista que a grande maioria das pessoas tenda a confundir-se com o poder, tal evidência não diminui em nada o valor de sua coragem e autenticidade,
ao deixar claro como encara a situação insustentável pela qual vem passando aquele povo.
E faz isso, do alto de sua postura predominantemente dialética, enfatizando o quanto são “inquebrantáveis” os laços que ligam os EUA a Israel, e reafirmando, aos judeus, sua solidariedade diante do sofrimento representado pelo Holocausto.
Em seu discurso essencialmente humano, sempre avesso a qualquer manifestação de violência, vinda de onde for, defendeu ainda o direito das mulheres, no Islã, de escolherem como viver suas vidas, seja da maneira tradicional ou adotando novos costumes; parecendo acenar, assim, para a intenção de basear no respeito humano, mas também na sinceridade, o que ele chamou de “um novo começo entre os Estados Unidos e os muçulmanos de todo o mundo”.

( Digo isso - e espero ser lida - com o cuidado necessário a todo e qualquer comentário sobre um político no exercício de suas atribuições. )

A REGRA DO JOGO - para quem viu

Um pouco cansativo.
Mas, a cada exibição, confirma sua decantada importância, principalmente tendo-se em vista a mensagem do filme, tão apropriada hoje quanto em 1939 - ano de seu lançamento.
Numa crítica severa, embora cômica, aos vários níveis da hipocrisia humana ( focando fatias da burguesia francesa e de seus empregados ), Renoir registra o quanto aqueles mais aparentemente afeitos aos manuais, códigos morais e sociais a serem seguidos são justamente os que, nas caladas das noites e das oportunidades, movidos por seus casuísmos viscerais, pisoteiam e transgridem quaisquer dessas regras.
Observando, a nossa volta, comportamentos tão iguais aos ali retratados ( não são poucos os "robôs" por cada um de nós conhecidos a repetirem seus textos decorados e sempre prontos a violá-los, desde que acreditem não ser descobertos ), acabamos por confirmar nossa teoria de que mover-se ética e moralmente dentro da sociedade só é verdadeiramente possível àqueles que escolheram o caminho do autoconhecimento, do desmascaramento, e da disposição para uma permanente e sincera discussão sobre valores ( consigo mesmos e com os outros ).
Ainda que isso implique assumir as incoerências inerentes ao simples fato de se ser um S E R H U M A N O.

Entre os muros da escola - para quem viu

Não é filme para ser especialmente apreciado por professores da rede pública brasileira.
As questões sociais, éticas, morais e humanas por ele levantadas apenas tangenciam em gravidade e variedade aquelas com as quais os mais sensíveis dentre nossos professores se deparam cotidianamente, estando ou não preparados para com elas lidar.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Balada de Narayama - para quem viu

Quem tem avós velhinhos e já descobriu o quanto se pode aprender com eles certamente se choca com “Balada de Narayama”, filme sobre os costumes, no século XIX, em um pequeno vilarejo japonês.
O filme nos conta como os anciãos, ao atingirem os 70 anos, eram condenados, ali, a morrer, de frio e fome, no alto de uma montanha coberta de neve. Diante da miséria circundante, poupavam, para os mais jovens da família, os alimentos que já não estariam em condições de ajudar a produzir.
Quando vemos a digna senhora, completamente convencida da importância de tal tradição e preocupada com o sustento dos netos, exigir esse tratamento do filho hesitante... E somos levados a comparar seu comportamento quase heróico ao de outro velho que, ao resistir a seu destino, acaba sendo jogado despenhadeiro abaixo por filho bastante decidido... Acabamos, sem dúvida, por admirar seu desapego à vida terrena e sua evidente consciência de que o que importa é dar continuidade à família, entregando-se “à vontade de Deus”...
No entanto, conhecemos histórias sobre o quanto muitas das culturas antigas valorizavam o velho e toda a sabedoria adquirida por ele ao longo dos anos. Dentre nossos índios, por exemplo, os pajés - e seus cabelos brancos – sempre foram os cidadãos mais respeitados nas tribos. Na Índia, conforme vemos na novela das 9, os mais jovens seguem o antigo hábito de cumprimentar tocando os pés dos mais idosos, como demonstração do respeito por todo o já longo caminho por eles percorrido literal e metaforicamente. E, principalmente, se tivemos a grande oportunidade de conviver com nossos avós, sabemos “de carteirinha” o quanto podemos aprender com eles. E acabamos por nos perguntar que fim teria levado o povo da região assolada pelo costume retratado no filme, uma vez que, abrindo mão de viver, geração após geração de velhinhos estariam apenas garantindo a continuidade de seus gens em indivíduos cada vez menos perpassados pela suprema sabedoria advinda da observação de... um velhinho.
Sem falar nas óbvias lições de humildade proporcionadas pelo simples mirar a decadência física à qual os corpos melhor cuidados dentre nós estão fadados, além da constatação de que - mais dia, menos dia - todos nós, inclusive os mais orgulhosos, precisaremos da boa vontade de alguém, dentre parentes e profissionais, são muitas as coisas que podemos aprender com aqueles que à nossa frente caminham.
Querem ver algo que aprendi com a minha avó depois de seus 88 anos? ( E posso dizer que aprendi a mesma lição com uma tia-avó muito querida que, infelizmente, já se foi. ) Aprendi que, para viver intensamente, não precisamos ser o tempo todo protagonistas de cenas especiais. O prazer advindo da poltrona do espectador das mais variadas histórias que se desenrolam no seio de uma família - e por que não, para nós, nesse exato momento, da história da humanidade como um todo? - pode ser, segundo pude ver refletido no brilho dos olhos de minha avó, imensurável.
Talvez seja esse mesmo prazer de espectador ( da saga humana? ) que, bem usufruído, prenda à vida alguns portadores de graves deficiências e aqueles miseráveis sem nenhuma condição ou esperança de protagonizar tantas situações por eles observadas através da televisão, ou de seu cantinho da calçada...
Da mesma forma que assistimos a filmes e novelas; lemos livros e ouvimos histórias, sequiosos por conhecer o desenrolar de cada enredo... Da mesma maneira que gostamos de rever um filme na companhia de quem ainda não o vira, observando a sua reação – espectadores de espectadores... Do mesmo jeito que gostamos de rever, à noite, em “flash back”, todas as cenas em que atuamos durante o dia – espectadores de nós mesmos... Assim, minha avó, depois de, pouco a pouco, abandonar suas atividades, passou a valorizar, mais e mais, cada lance da vida de seus filhos, netos, bisnetos... Quem vai fazer uma prova importante? Quem vai entrar num avião? Quem passou num concurso? Quem está de namorado novo? Quem está doente, precisando de cuidados? Quem está sofrendo, precisando de orações? Quem está feliz, para darmos vivas?
E minha avó, de sua cadeira de balanço, ao telefone, ou com a ajuda de suas muitas visitas, até há bem pouco tempo, vinha costurando as muitas histórias que acompanhava e com as quais, como ouvinte atenta e plena de empatia, vibrava, sofria, vivia, sonhava, torcia, era feliz e tornava todos nós felizes apenas por sabermos que estava lá, torcendo por nós, esperando por notícias, por cada capítulo de sua novela viva, que, durante estes últimos anos, talvez venha protagonizando como nossa professora ( seria o caso de todos os "espectadores"? ), enquanto acreditávamos - nós e ela - que estava sendo uma “mera”espectadora.
( Vide "A menopausa e minha avó", para notícias mais atuais sobre sua história )

terça-feira, 2 de junho de 2009

Caminhada na Praia: Metáfora da Vida?

Há algum tempo observo que, caminhando na praia, sempre que alguém comigo emparelha, tendo a diminuir meu ritmo, ansiosa para que aquele parceiro indesejado logo se adiante e eu possa acelerar novamente meu passo.
Outro dia, em meio a minha caminhada, percebi que, ao emparelhar com moça mais nova e preparada para a atividade do que eu, ela, a moça, apressou desproporcionalmente o passo, de maneira até brusca, como se assustada por haver corrido o risco de se ver ultrapassada por uma senhora como eu.
Claro que poderia ser uma simples impressão essa que tive, não tivesse tido a oportunidade de ver a cena se repetir, no dia seguinte, quando um rapaz emparelhou com a mesma moça.
Daí foi que fiquei pensando se aquele comportamento poderia ser tomado como uma metáfora da postura daquela mulher em outras situações de sua vida, no trabalho, no amor. Estaria ela, assim, sempre pronta a reagir ao primeiro sinal de competição?
Tal pensamento me obrigou, então, a me perguntar sobre o quanto de aversão a qualquer disputa, por minha vez, poderia identificar em meu modo de reagir totalmente oposto ao dela, diante da mesma situação.
E, querendo ser sincera comigo mesma, não pude deixar de aventar a possibilidade de que, por trás da minha aparente recusa ao confronto de performances, pudesse se ocultar, de certa forma, espírito mais competitivo do que o dela. A me afastar de qualquer chance de perder, ainda que ao preço de também não ganhar.

A Igreja do Diabo ( Machado de Assis )

Que melhor metáfora para a impossibilidade humana de se manter univocamente no caminho escolhido, qualquer que seja ele, do que esse conto de Machado de Assis?
A ambiguidade que perpassa todos nós a cada escolha, a cada posicionamento, é magnificamente identificada pelos leitores na incapacidade dos personagens do conto de se manterem fiéis à Igreja do Diabo, ainda que nessa Igreja todos os pecados lhes sejam, mais do que permitidos, incentivados.
É quando se veem obrigados a viverem sua gula, avareza ou inveja sem qualquer restrição ou limite que, de sua sombra, emanam, às escondidas, gestos de caridade, parcimônia e solidariedade.
E Deus explica o ocorrido ao decepcionado Diabo:
"__ Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana."