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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A gente sonha cada coisa...

Noite dessas tive um sonho muito estranho... Foi um pesadelo.


Alguém me dizia:

__ Acha mesmo que um dia seu romance “A Juíza”, por mais maravilhoso que seja, vai conseguir ser aprovado publicamente por aquela pessoa?

No sonho, eu compreendia perfeitamente a que pessoa se referia meu interlocutor. Depois de acordada, no entanto...

De qualquer forma, lembro de haver respondido:

__ Por que não?

E a resposta veio sem se fazer de rogada:

__ Ora, você e essa sua ingenuidade que às vezes beira à burrice! Estou falando de que pessoas como ela, cujo aval a seu livro poderia lançá-lo à lista dos mais vendidos, tem uma ou outra causa na Justiça, ou teme vir a ter alguma...

__ E daí?, devolvi eu.

__ E daí que, ainda que seu livro seja uma obra de ficção, certas pessoas podem temer que confundam sua aprovação a ele com crítica ao judiciário... Ou, quem sabe?, a algum juiz ou juíza do qual estejam precisando no momento... Depois, você já ouviu falar em corporativismo?

Indignada, antes de acordar, encerrei a conversa:

__ Como assim??? Não, não acredito no que diz, não.
Meu livro é um romance e sequer é ambientado com exatidão no tempo ou no espaço... E ainda que fosse ele espécie de crítica a parcela do judiciário, pense: aqueles que agissem da maneira que você sugere, sem coragem de opinar sobre um texto literário - seja por medo de sofrer algum tipo de represália, seja por alguma espécie de fidelidade distorcida - é que estariam fazendo à Justiça, em toda sua inteireza, uma baita crítica.

No meu entender, isso, sim, é que seria ofensa.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

RETICÊNCIAS...

Uma leitora – que leu um dos meus livros e costuma visitar o blog – acaba de me escrever, dizendo que uma coisa a incomodava em meus escritos: o uso infinito das reticências, a interromperem, toda hora, seu raciocínio.

Respondi a ela, mais ou menos, o que segue. Quem sabe, respondo, por tabela, a outros leitores que possam se incomodar com a mesma coisa?


Acredito que realmente as reticências sejam característica marcante em meu estilo. Sendo que muitas vezes o que quero é mesmo interromper o leitor, fazendo-o retornar ao texto outra vez ele mesmo... Em todo caso, pode ser que às vezes exagere – vou prestar mais atenção.

Por outro lado, fico pensando: por que você – e certamente pode não ser apenas você – se incomoda tanto com essa espécie de "interrupção" provocada pelas reticências...? Ou melhor, a pergunta talvez seja: por que as pessoas, de modo geral, não querem ser interrompidas?

Seria porque, na verdade, a interrupção que todos tememos é a sempre negada morte? E, assim, preferimos nos distrair com tudo que pareça mais contínuo do que a própria vida?

Machado de Assis sempre cuidou de “interromper”, a todo momento, seus leitores ( vide Roberto Schwarz sobre o assunto )... E eu, que sou apaixonada por sua obra, agora, fico sabendo que estou obtendo, de certa forma, o mesmo tipo de resultado... Creia, fico contente.

Afinal, em relação a cada leitor, o papel do escritor - daquele escritor que, mais do que convencer o leitor daquilo que diz, acaba por auxiliá-lo no caminho do autoconhecimento, em direção ao “humano universal” – talvez sempre haja sido, seja, e continue sendo, pura e simplesmente, ”interrompê-lo”.

OS MAIS LIDOS NO BLOG

Fico imensamente gratificada ao ver como o que escrevo tem sido bem recebido.

Obrigada, gente!

Gosto também de constatar que textos como "Capitalismo: uma história de amor" ( procure no mês de julho/10 ) e "O Menino do Pijama Listrado" ( procure no mês de julho/09 ) estão entre os mais visitados.

Se você ainda não os leu, por que não vai até lá, depois de ler as publicações atuais?

Creia, em tempos de eleição, de pensarmos em qual mundo queremos ajudar a construir, eles são ótimas reflexões.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

5 X FAVELA - AGORA POR NÓS MESMOS

Conseguiram!

Roteiristas, diretores e atores ( brilhantes! ) definitivamente conseguiram produzir cinco filmes sobre favela capazes de tocar profundamente também a alma daqueles que vivam bastante longe de qualquer favela.

Para me lembrar depois, batizei a primeira história de “Faculdade”; a segunda, de “Galinha”; a terceira, de “Violino”; a quarta, de “Pipa”; e a quinta, de “Natal”.

Já nos primeiros minutos de “Faculdade”, o personagem Maycon, morador da favela que consegue passar no vestibular para a faculdade de Direito, resume as cinco histórias, ao explicar a abastado colega que, no lugar onde mora, "é difícil separar-se o certo do errado"...

A verdade é que também aqui, em nosso mundo, parece cada vez mais tênue a fronteira entre o certo e o errado, entre o bem e o mal... Tanto é que é o rapaz “bem nascido” a propor que Maycon – até então apenas preocupado em ser bom filho, bom irmão e bom aluno - seja seu fornecedor de drogas...

Como as cenas são produzidas com competência e sem qualquer sinal maniqueísta, acredito que, logo de cara, seja impossível a qualquer um ficar na defensiva ou recusar-se a perceber como são permeáveis os mundos...

O espectador foi capturado. Acomoda-se melhor na cadeira, percebendo-se diante de muito mais do que uma chance oferecida a jovens diretores de cinema da favela.

E segue descobrindo os vários arquétipos que tocam a humanidade como um todo e que são abordados no filme com maestria.

O sonho, o amor, o sonho, a amizade, o sonho, a família, o sonho, o medo, o sonho, a dor... O sonho.

Está tudo lá.

O sonho de Maycon de se formar em Direito é realizado, mas, no terceiro episódio – “Violino” -, vemos o sonho de ser violonista de uma das personagens acabar tragicamente...

Em todos os episódios, percebemos o cuidado, consciente ou não, de não mostrarem qualquer imagem que pudesse ser interpretada como preconceito em relação ao preconceito que, por sua vez, sabemos que ainda sofrem os moradores de qualquer favela. ( Certamente cada vez menos e menos ainda quanto mais for assisitido o “5 x favela...”. )

Assim é que na tela não vemos brancos maltratando negros ou ricos maltratando pobres ( na faculdade, por exemplo, Maycon não é discriminado por qualquer colega ). E sequer somos obrigados a decidir, na trágica história da violinista – única em que nos deparamos com flagrante violência - se os policiais são melhores ou piores do que os bandidos...

Ainda que nos leve a refletir sobre a esquizofrênica visão do policial em confronto com suas origens não apenas em nome da farda, o filme parece simplesmente querer mostrar o que É. Sem qualquer julgamento. Inclusive as diferenças entre os vários segmentos da sociedade são sublinhadas justamente pela ênfase em sua igualdade, sendo a favela apenas pano de fundo para dramas humanos possíveis em qualquer parte do planeta.

Veja-se o trecho quase cômico do segundo episódio – “Galinha” -, no qual um grupo de crianças de escola particular assalta os dois garotos que saem da favela em busca de uns trocadinhos para comprar um frango que pudesse incrementar o jantar de aniversário do pai de um deles...

Essa inversão do imaginário social é sublime, um dos pontos altos do filme... Seria uma metáfora para a injustiça social ou algo assim? Não importa. O que importa é que ela confunde, mais uma vez, os dois mundos, aqui e lá, lá e aqui...

No quarto episódio, “Pipa”, rapazinho é obrigado a atravessar a ponte que separa sua comunidade da comunidade rival, em busca da pipa que deixara escapar... Depois de sustos e da pipa recuperada, aproveita ele para visitar a colega de escola – moradora daquele lado -, pela qual estava apaixonado...

Destaque para a poesia improvável da cena que encerra o quadro: uma ponte caindo aos pedaços, sobre um rio de esgoto e sujeira, tendo em seu centro os dois jovens combinando encontro para o dia seguinte...

O último conto é o “Natal”.

A fala mais marcante da história é do eletricista, que está ali para fazer o reparo em um poste de luz, já que algumas casas corriam o risco de passar o Natal às escuras.

Ao telefone, para o colega que o aguarda embaixo e tem pressa de ir embora, viver o seu Natal, Lopes diz:

_ Aqui também é Natal.

Mas voltemos ao segundo episódio. Não consigo deixar de pensar algumas vezes que talvez seja esse aquele do qual mais gostei...

Belíssimo! Inteligente! Delicado! Sutil!

Sem falar que deixa importante mensagem para os moradores de qualquer dos lados de qualquer ponte...

Claro, sei que haverá aqueles espectadores que desmerecerão o episódio por nele identificarem um certo cunho moralista...

Mas não: moralista é aquele que vive da forma, da aparência, é aquele que gosta das palavras bonitas e vazias... O moralista não raro é também um hipócrita.

E esse segundo episódio – eu o batizei de “Galinha”, mas ele se intitula “Arroz com feijão” - fala justamente das lições mais profundas, daquelas que recebemos diretamente em nosso coração, não através de ensinamentos formais, mas através da simples observação daqueles que têm alguma ascendência sobre nossa alma.

No conto, o menino acaba por roubar um frango para presentear o pai, ao qual garante haver comprado o alimento com dinheiro ganho ajudando o “homem dos cavalos” a limpar a sujeira que os animais haviam feito... Mas, durante o jantar, ele fica impressionado com a história do pai sobre o quanto sofrera, em criança, ao saber que o avô do garotinho roubara um frango para alimentar a família...

O sincero sofrimento paterno diante daquela situação fá-lo tomar a decisão que, além de garantir, ao espectador, final divertido e criativo, ilustra o que seja a única educação passível de obter bons resultados na favela ou fora dela: o testemunho de vida, o exemplo vivo de reação possível diante dos pequenos e grandes embates da vida entre o Certo e o Errado...

Os exemplos negativos, infelizmente, funcionam da mesma maneira.

Enfim, volto a me lembrar dos jovens sobre aquela ponte e, imaginando-os afetuosos, ali, parados, no ponto exato em que se unem e se separam os territórios dos grupos rivais, penso que os melhores sentimentos estão mesmo acima de tudo... Como as “pipas”, eles não respeitam as fronteiras forjadas em qualquer tipo de guerra... E concluo que uma compreensão profunda da existência de uma espécie de “humano universal” – certamente facilitada por obras como “5 x favela – agora por nós mesmos" - pode ser a ponte entre a favela e o resto do mundo, ou entre o resto do mundo e a favela.

REPRODUZIDO NO PORTAL DA PRODUÇÃO DO FILME "5 X FAVELA - AGORA POR NÓS MESMOS".

AINDA EM TORNO DOS SIGNOS "PRETO" E "BRANCO" E DO FILME "NOSSO LAR"

Partindo-se do princípio de que Chico Xavier haja descrito minuciosamente, no romance que acaba de virar filme, as vestes dos espíritos tanto do “Umbral” quanto de “Nosso Lar”, imagino que aqueles que adaptaram a história por ele psicografada possam haver resolvido apenas reproduzir as imagens criadas pelo médium/escritor ...

Tudo bem.

Mas a questão da qual tenho tratado aqui independe de que o muito respeitado médium haja feito descrições totalmente objetivas ou que simplesmente roteiristas e diretores tenham interpretado suas palavras a partir de arquétipos durante muito tempo arraigados no imaginário social, associando o branco à pureza e o preto à maldade.

Associações essas que suponho começadas muito antes de qualquer apartheid social. Provavelmente quando os primeiros homens descobriram que a luz do dia e mesmo a do fogo protegiam-nos dos animais ferozes que podiam surpreendê-los na escuridão da noite...

Mas hoje sabemos que muitas vezes é ao fecharmos os olhos que podemos ver melhor as coisas... E que são infinitos os exemplos em que as duas cores podem se associar igualmente ao positivo ou ao negativo, o tempo todo relativizados...

E acredito que, de qualquer forma, precisamos ser cuidadosos, para que nossa memória atávica não interfira na formação de nossos conceitos e valores... Principalmente quando quisermos simbolizar aqueles absolutos como o supremo bem, desejado por todos e indentificado com a evolução espiritual; e o supremo mal, mergulho do espírito no próprio inferno.

Bem, tenho querido aqui, ao falar das impressões em mim causadas pelo filme Nosso Lar, tratar da possibilidade de que nosso imaginário esteja sobrecarregado de associações – muito mais do que na época em que foi escrito o livro – das quais, consciente ou inconscientemente, já não estamos muito convictos...

Afinal, para não nos aprofundarmos muito, quem não conhece a noiva, casando-se em terceiras núpcias, que veste-se de branco apenas para realizar seu sonho de menina? Ou seja: o branco vem deixando de ser considerado símbolo virginal...

E isso não é ruim.

É transformação...

É abrir-se caminho, no caso, para o fim da hipocrisia.

Por outro lado, depois que me falaram de uma pesquisa realizada com crianças negras, às quais foi perguntado, apresentando-se-lhes bonecas brancas e negras, quais seriam as bonecas ruins, e que a resposta veio, de todas elas, firme, com os dedinhos apontados na direção daquelas com sua mesma cor de pele, cheguei à conclusão de que precisamos apressar a desconstrução da noção negativa atribuída ao preto, ao escuro, à cor negra, no imaginário social.

Certamente o resultado assustador de tal pesquisa acena para valores ideologicamente impostos. E fico pensando se não seria justamente por causa daquela nossa memória antiga, da qual falávamos, que foi possível o domínio cultural e ideológico dos brancos sobre os negros, que demora a acabar.

Assim, é todo esse imaginário que precisamos pensar em conscientemente desconstruir. Principalmente os fazedores de cultura. Principalmente os intelectuais. Principalmente todo e qualquer ser humano que se diga espiritualista.

Pois a verdade é que todo escritor, ainda que seja ele um espírito - e exprima-se através de um médium -, se quiser ser lido e compreendido, além de precisar escolher a Língua da qual fará uso, terá, necessariamente, de utilizar imagens que façam sentido para seu público alvo em determinado momento da História. Ainda quando consiga inserir em sua obra, aqui e acolá, algumas novas perspectivas impactantes...

Cabe aos que venham interpretar, no correr dos anos, qualquer obra, a tarefa de manter carinhosamente seus significados. Sempre conscientes, no entanto, da possibilidade de precisarem rever, a cada vez, os signos através dos quais possam expressá-los.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

"Luminosa Escuridão"

Estava imersa em minhas impressões acerca ainda do filme "Nosso Lar" quando me chega o e-mail da prima e amiga Sandra, com quem tenho tido, principalmente ao longo dos últimos anos, o privilégio de compartilhar sentimentos e reflexões em torno de temas relacionados com a espiritualidade.

Dessa vez, ela quer dividir com os amigos belo texto de Huberto Rohden intitulado "Serenidade Mística"... Como um trecho desse texto é emblemático daquilo que venho tentando, de meu lado, dividir com meus leitores sobre o filme, reproduzo-o aqui:

"[...] Esse estado é essencialmente anônimo. Deus é o rei dos anônimos - e é por isso que os homens lhe dão tantos nomes, porque nenhum deles define o indefinível, o inominável.
Paulo tentou definir o estado anônimo do homem imerso na atmosfera da indefinível Divindade, mas acabou confessando que o que ouvira eram "árreta rémata" - "ditos indizíveis"...
Agostinho procurou atingir o intangível - mas capitulou com armas e bagagens e gemeu sob o peso da sua incompentência....
Tereza D'Ávila, João da Cruz, Eckehardt e tantos outros falam em "luminosa escuridão", em "solidão sonora", "no silêncio deserto da Divindade", no "vácuo da plenitude", e outros paradoxos que nada dizem - e muito fazem adivinhar.
Um desses ébrios da Divindade chega a dizer que esse estado místico é um "des-nascimento" - e esta palavra é uma das mais felizes e verdadeiras. Pelo nascimento se materializa o homem - é necessário des-nascer para a matéria, a fim de poder renascer para o espírito. [...]"

Destaco o belo paradoxo "luminosa escuridão": acredito que seja em torno de imagens como essa - a evidenciarem a "coexistência sobreposta" entre o preto e o branco, entre o claro e o escuro - que dever-se-iam reunir os cineastas dispostos a se desfazerem do engessamento de certos conceitos em face de futuras criações do gênero espiritualista.
( Vide nesse blog texto intitulado "UNIDADE", 06/09 )

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A CRIAÇÃO

A história de Charles Darwin, retratada nesse filme, é muito mais instigante do que à primeira menção possamos imaginar.

Apegado à família e dedicado à sua pesquisa, que - preocupado que parecia em esmiuçar todas as suas observações da evolução dos seres vivos até o surgimento do animal homem sobre a Terra - leva mais de vinte anos para concluir, ele não para por aí.

A verdade é que o cientista, conhecido por sua teoria da “Evolução das Espécies”, tida ainda hoje por muitos como antagônica à teoria da “Criação” - segundo a qual Deus criou o mundo em 7 dias -, surge-nos como personalidade das mais interessantes.

Tanto quanto sua dedicação ao trabalho, parece-nos imenso o amor que o cientista nutre pela mulher e pelos filhos, com destaque para a primogênita. De tal forma que, após sua precoce morte, aos 10 anos, passa a manter com ela intermináveis conversas imaginárias, num relacionamento diário mais real do que o mantido com o resto da família.

O melhor do filme: levar-nos a imaginar que o que atrasou a pesquisa de Darwin, mais do que o nível de sua exigência profissional, possa haver sido a dúvida em relação à conclusão última que, a seu tempo, suas ideias pareciam sublinhar: a negação da existência de Deus. Todo o amor devotado à filha morta, que o levava a querer acreditar que a morte não podia ser o fim de tudo(?), pode haver sido a razão de sua confusão humanamente enriquecedora.

Melhor ainda: que sua esposa, muito apegada aos dogmas religiosos e o tempo todo contrária àquelas pesquisas, ao final, após ler todo o trabalho do marido - que deixa em suas mãos a decisão sobre sua publicação ou não -, acabe ela mesma encaminhando o calhamaço à editora, pronunciando as contraditórias e humanas palavras: Que Deus nos perdoe!

A bela e humana ambigüidade, o conflito, o quase reconhecimento pelo casal de indícios da existência concomitante e complementar de ambas as teorias, Criação e Evolução, colocam como fundo, para essa história ambientada no século XIX, as ideias mais ousadas em torno dessa convergência, diante das quais, em pleno século XXI, muitos ainda reagem furiosamente.

A FITA BRANCA

Em um fictício vilarejo alemão, pouco antes da primeira guerra mundial, era hábito amarrar-se uma fita branca no cabelo ou braço das crianças, para que não se esquecessem de qualidades como ingenuidade e bondade.

Vários incidentes, no entanto, acabam por acenar para a possibilidade de que, quando se precisa materializar a pureza em um signo, é sinal de que ela, como que congelada, já deu lugar à hipocrisia.

Comenta-se que a feitura do filme pretendeu registrar os traços - presentes nos homens e muitas vezes transmitidos por eles a seus filhos, geração após geração - que poderiam explicar o fato de um povo, de uma ou outra maneira, aceitar o comando vindo de mentes doentias como a de Hitler.

Parece que está tudo lá: as ações sádicas de alguns como provável resultado da convivência numa sociedade essencialmente hipócrita; a hipocrisia e desumanidade do pai ao falar com o filho adolescente sobre questões da sexualidade humana – dando início a uma série de recalques(?); as violência e maldade manifestas pelas pessoas, dentro e fora de suas casas; a intolerância com as diferenças, inclusive da própria mãe em relação ao filho dito “retardado mental”; a coragem de usar-se as pessoas em proveito próprio, ignorando seus sentimentos...

Observei que alguns, após assistirem a "A fita branca", parecem não compreender a acenada relação de sua história com o terrível nazista que só surgiria trinta anos depois...

Bem, fico com a hipótese de ser ela uma alusão à possibilidade de haverem vários “hitleres” em gestação já naquele exato momento... Ou seja: talvez estejamos diante de um filme sobre a sociedade ( certamente não só a alemã ) que forjou o pior ditador nazista de toda a História humana.

Quanto ao fato de um povo aceitar ser comandado por um homem ignóbil, pode ser explicado, por um lado, pela necessidade de cada um dos outros "hitleres" exorcizar de si mesmo os próprios demônios, quando não esteja essa aceitação baseada simplesmente na escolha de um semelhante... E, por outro lado, pela tendência que a grande maioria das pessoas vulneráveis a todo o tipo de maldade, ali, como em qualquer outro lugar, tem de confundir força com despotismo e proteção com opressão.

Enfim, mais uma vez, concluo que um profundo autoconhecimento e o desejo consciente de encontrarmos nosso melhor como seres humanos é e será sempre a única maneira de fazermos, se não a ideal, pelo menos a melhor escolha dentre nossos possíveis representantes.

sábado, 18 de setembro de 2010

Nosso Lar 2

Todos os espíritos “do bem”, em “Nosso Lar”, vestindo roupas brancas e os "do mal" apresentando-se em trapos escuros pode ser outro clichê...

Sabemos que o branco é a soma de todas as cores e que o preto é uma sua absoluta ausência...

Se tomamos o branco como "tudo" e o preto como "nada", e a Física Quântica e as Filosofias Esotéricas nos falam da “potencialidade pura” que pulsa única e exclusivamente no absoluto silêncio do profundo “nada”, que dá origem a “tudo”...

E se sabemos que a consciência acaba por retornar ao ponto de onde partiu...

Podemos concluir que escuridão e luz, que o preto e o branco, que o tudo e o nada confundem-se tão completamente que sempre - e principalmente em produções espiritualistas - deveríamos atribuir-lhes o mesmo valor.

Desestigmatizando-se o negro.

Colocando-se o branco e o preto, juntos, em seu devido e mesmo lugar.

Outro amigo com blog

E não é que meu bom amigo Ronaldo Lima Lins acaba de ganhar de presente de uma aluna um blog no qual possa divulgar suas dezenas de livros, dentre romances e ensaios?

Sem falar nas poesias...

As poesias de Ronaldo são das mais bonitas e interessantes que já vi na vida... Filosofia pura... Parece que Fernando Pessoa finalmente encontrou por aqui concorrente à sua altura...

A começar pelo título, "Mais do que areia, menos do que pedra", o livro de Ronaldo Lima Lins - que reúne textos poéticos - é estímulo para todos os espíritos, especialmente para aqueles cansados de se decepcionar nas livrarias diante de obras cujo maior mérito de seus autores parece ser conseguir um bom resenhista.

É dele:

"Um trovador
que passava numa aldeia,
a quem perguntaram
ser contra ou a favor,
respondeu:
sou e não sou contra;
sou e não sou a favor.
Enforcaram-no em praça pública.
Mas não lhe enforcaram os versos.

Sobreviveu."

ESCÂNDALO!

O “Cinema e Letras: Impressões” sempre se posiciona criticamente diante de ideias e não diante de pessoas ou partidos; já tendo tido eu oportunidade aqui de falar, por exemplo, sobre o quanto é bom aquele que escreve poder se sentir à vontade para analisar livremente o pensamento expresso por alguém, seja ele de direita ou de esquerda.

Aliás, segundo tenho podido concluir, eu, que jamais poderia ser rotulada como de direita, talvez não possa também ser incluída entre os ditos de esquerda... Sou, segundo alguns amigos, uma livre pensadora, mais humanista do que propriamente socialista... E, embora simpatize com alguns esquerdistas, entendo que não façamos parte da mesma turma.

Sendo assim, a força daquilo que escrevo não aumenta ou diminui ao sabor dos mais recentes escândalos em nossa política. E continuo me sentindo à vontade para perguntar: se história parecida com a do tráfico de influência ( nojenta, diga-se de passagem ) envolvendo a Casa Civil tocasse de perto a candidato que não andasse assustando tanto a grande imprensa como, ao contrário, parece que Lula/Dilma vêm fazendo – vide editorial, no Globo de anteontem, intitulado “Um projeto autoritário em marcha” -, será que ela ( a história ) seria tratada com a mesma paixão pela grande mídia?

Essa, no meu entender, é a grande questão ética a envolver os meios de Comunicação.

Posso estar enganada, mas, sinceramente, não me lembro de haver visto a mesma disposição em torno de notícias, por exemplo, sobre o escândalo das “Ambulâncias”, a respeito do qual hoje ainda dever-se-ia falar bastante, para que o povo não o esquecesse...

Ou talvez a verdade seja que, ao longo dos anos, vimos, em nosso país, tantas imundícies que não daria para determinar aquelas que deveriam ser mais lembradas... Principalmente porque posso imaginar que não seja pequeno o número das que, apesar de lamacentas e terríveis, a pulularem em diversos setores da sociedade, por alguma razão, jamais chegaram a virar notícia.

De qualquer forma, partindo do princípio de que a última sujeira vinda à tona corresponda à mais pura verdade, essa é uma ótima oportunidade para registrarmos o quanto pode ser proveitoso para o povo - num país no qual a grande imprensa, no entendimento de alguns, parece dar mostras de torcer pelo partido representativo das elites - ser governado pelo PT, por exemplo. Ou pelo PSOL.... Ou pelo PDT...
No mínimo, isso parece ser garantia de uma informação caprichada em todos os sentidos e direções. Exatamente como a queremos.

Mais uns dois ou três mandatos assim, denúncia após denúncia, pode ser que toda a corja seja espanada e que possamos usufruir apenas dos melhores ideais de presidentes pelos quais Frei Betto possa dizer – como acaba de dizer do presidente Lula – que por eles colocaria suas mãos no fogo.

E, já que estamos falando novamente sobre a imprensa ( vide aqui artigo “Liberdade DE Imprensa ou DA imprensa?” ), segundo o citado editorial de O Globo, Lula prepara ataque à liberdade de imprensa e de expressão:

“Será deixado pronto para Dilma um projeto que, entre outros pontos, pretende regular as chamadas “participações cruzadas”, com o objetivo de reduzir o tamanho e a diversificação dos grupos de comunicação. [...] É falso o argumento do incentivo à competição, pois hoje em dia, com a internet e a proliferação de canais de distribuição de informações, há incontáveis e crescentes opções à disposição de leitores, telespectadores e ouvintes. O real objetivo do projeto, de origem chavista, é acabar com a independência das empresas profissionais de jornalismo e entretenimento, pelo corte do seu faturamento, hoje obtido por múltiplas fontes de receitas. Reduzidos em sua escala, os grupos terão de buscar verbas oficiais para se manter, e com isso acabará na prática a liberdade de imprensa.”

Pensemos:

a) Concentração de poder é sempre concentração de poder. Por mais opções que hoje tenhamos, nenhuma delas ( chega a ser covardia qualquer um tentar compará-las, por exemplo, com as Organizações Globo ) tem como atingir o público por todos os lados, promovendo, por exemplo, a ideologia dominante – sutil ou agressivamente; direta ou indiretamente -, através da divulgação ou excessiva valorização de "SEUS" padrões, novelas, músicos, artistas, escritores, marcas, intelectuais, valores, escolhas, desejos, temores, produtos, grupos e - por que não? - candidatos.

b) Como se pode considerar INDEPENDENTE qualquer empresa que objetive lucro? E, se, como afirma o editorial em tela, “reduzidos em sua escala, os grupos terão de buscar verbas oficiais para se manter, e com isso acabará na prática a liberdade de imprensa”, é sinal de que reconhece ela mesma sua submissão àqueles que a mantenham.

c) A imprensa atual possuiria, então, senhores, ainda que “múltiplos”?

d) Certo é que, mesmo diante de um consumado projeto de combate à concentração no que se refira à Comunicação, não haveria necessidade de qualquer empresa submeter-se aos desígnios de qualquer governo democrático. Bastaria que reavaliasse sua ambição e o seu grau de dedicação à construção de um mundo realmente melhor e mais justo para todos.


Obs. Não posso deixar de comentar também o quanto pode ser falaciosa a interpretação dada pela imprensa às palavras de José Dirceu em torno do “abuso no poder de informar”...

Li, no blog de Theotonio de Paiva, um artigo sobre alguns jornalistas que, ao prepararem a apresentação do jornal de cada dia, riem-se dos espectadores, chamados entre eles de “HOMERs” - à imagem do idiota Homer Simpson do seriado americano. Será que são muitos dentre eles a pensarem que somos todos nós meros incapazes de compreender o significado do que seja dito quer por eles, quer pelos mocinhos ou bandidos de nossa História?

Pois, por mais que José Dirceu - comprovadas as acusações a pesarem sobre ele - mereça pagar por seus erros, qual o direito temos nós de inventar significados para aquilo que ele diga?

De meu lado, tenho certeza de que é mais provável que, ao pronunciar algo como o “abuso no poder de informar”, ele se referisse não de forma crítica à obviamente esperada questão feita pela imprensa de trazer à tona tudo o que aconteça e que mereça tornar-se do conhecimento do público, que é como a imprensa parece convenientemente interpretá-lo... Mas sim ao abuso que a muitos leitores, espectadores, telespectadores parece incomodar. Abuso esse no sentido de simplesmente parecer - pelo menos aos leigos no assunto - que a grande mídia dispõe ilimitadamente do poder de escolher e determinar O que será ( ou NÃO será ) e COMO será noticiado. Sem falar no QUANDO, que também pode ser científico.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A EVOLUÇÃO DA HUMANIDADE ENQUANTO TODO

Abaixo, com os ajustes que julguei necessários, dois trechos do meu "Vaidade é Loucura ( na obra de Machado de Assis )" - recebido com carinho por Wilson Martins.

1) “Uma visão de mundo transcende tempo e espaço. Assim é que nos percebemos traçando paralelos entre aquela que nos parece ser a de Machado de Assis e a de mais um pensador não-contemporâneo ao escritor. Para Teilhard Chardin, nascido apenas quando Machado já elaborava as mesmas questões, 'os modos de proceder da vida são três: a profusão, a inventiva e a indiferença para com os indivíduos'. Sobre este último modo de proceder da vida, afirma:

‘Quantas vezes a Arte, a Poesia, e até a própria Filosofia não têm pintado a Natureza como uma mulher de olhos vendados, pisando uma poeira de existências esmagadas [...]
Pelo fenômeno da associação, a partícula viva é arrancada a si mesma. Presa num conjunto mais vasto do que ela, torna-se parcialmente escrava deste. Deixa de pertencer a si própria.
E o que a incorporação orgânica ou social faz para a distender no Espaço, realiza-o não menos inexoravelmente no Tempo o seu acesso a uma linhagem. Pela força da ortogênese, o indivíduo encontra-se incorporado na fieira. De centro, torna-se intermediário, elo. Já não existe: transmite.’

E parece-nos que era dessa transmissão quase mecânica, desse legado inconsciente, que tratava o Brás Cubas de dizer não haver deixado filhos para herdar, como se fora possível, assim, interromper a corrente... Quanto a Machado, constatamos a consciência que já demonstrava ter dessa inexorável cadeia humana ( magnificamente sintetizada na herança deixada por Quincas a Rubião, que, por sua vez, deixando uma “coroa”, pede que seja guardada), dessa complexificação advinda de uma organização cada vez maior da consciência sempre e sempre acrescida e transmitida de um para outro homem, e para cujo desenvolvimento certamente contribuiu sobremaneira o escritor.

Para Teilhard Chardin, tal expansão da consciência obedece ao mesmo processo que antes ocorreu com a matéria, que teria, através de um processo incessante de complexificação, culminado no surgimento da vida e da consciência, no caminho da evolução. Para o padre e cientista, ainda, a cada vez maior organização das consciências acabaria por culminar naquilo que chamou de algo hiperpessoal (no ponto ômega) ou “Cristo Cósmico”.

Parece-nos que Machado já nos obrigava a olhar para tal possibilidade, sempre despertando nossa consciência, nossa crítica, fazendo-a projetar-se sobre nossa sociedade; mas sempre preocupado em nos interromper de nossa projeção para percebermos quem somos cada um de nós, tijolos dessa sociedade.

Como vimos no capítulo intitulado “A aurora possível”, a tomada de consciência, a lucidez quanto a nós mesmos, a que parece o tempo todo nos querer levar Machado, faz ecoarem as palavras de Pascal, cujos excertos, de resto, vemos como parte integrante da obra machadiana.


‘O homem é grande quando se reconhece miserável’, dizia Pascal. Reconhecimento que, se durante a leitura dos textos de Machado de Assis concretiza-se, vislumbramos a possibilidade da construção de sociedades verdadeiramente humanas, cujas bases decerto trariam a compaixão resultante da consciência do quanto é ilusória a nossa noção de individualidade, mantida por nossos egoísmo e vaidade.

Assim é que, sempre preocupado em criticar nossos sistemas filosóficos e nossas instituições -relativizando todo e qualquer valor, mas certamente comungando com Schopenhauer, segundo o qual a salvação é, sim, possível ao homem compassivo que ‘compreende a vaidade das rivalidades e do egoísmo dominador, entendendo que seu sofrimento e o do outro são um único sofrimento' -, parece que o autor antecipava mesmo o pensamento de Teilhard , segundo o qual:

‘A Saída do Mundo, as portas do futuro, a entrada no Super-Humano, não se abrem para diante a alguns privilegiados apenas, nem a um só povo eleito entre todos os povos! Elas não cederão senão a um empurrão de todos juntos, numa direção em que todos juntos se podem reunir e completar numa renovação espiritual da Terra.’”


2) “Busquemos em Teilhard Chardin o esclarecimento necessário à nossa negação da individualidade, a fim de que não a confundam com qualquer tipo de panteísmo:

‘Seja em que domínio for - quer se trate das células de um corpo, ou dos membros de uma sociedade, ou dos elementos de uma síntese espiritual - a União diferencia. As partes aperfeiçoam-se e completam-se em qualquer conjunto organizado. Foi por termos descurado esta regra universal que tantos Panteísmos nos transviaram no culto de um Grande todo em que os indivíduos se perderiam como uma gota de água, se dissolveriam como um grão de sal, no mar. Aplicada ao caso das somas da consciências, a Lei da União livra-nos desta perigosa e sempre renascente ilusão. Não, ao confluírem segundo a linha dos seus centros, os grãos de consciências não tendem a perder os seus contornos e a misturar-se. Acentuam, pelo contrário, a profundidade e a incomunicabilidade de seu ego.
Quanto mais se tornam, todos juntos, o Outro, mais se acham “eles mesmos”’

Na verdade, foi justamente por não querermos nos comprometer com qualquer confusão com o panteísmo que preferimos ligar Machado ao pensamento teilhardiano do que ao hegeliano. No entanto, não podemos deixar de acenar para as semelhanças entre as três filosofias.

O panteísmo de Hegel, diferentemente do panteísmo de Spinoza - que identificava Deus com a natureza -, identificava Deus com a História. Deus seria o que se realizaria na História. Como Teilhard Chardin, Hegel observa a progressiva complexificação dos "seres", no decorrer da história da Terra: minerais, vegetais, animais e, enfim, seres providos de consciência, que se organizam em civilizações.

Para ele, a razão é progressiva, pois sempre algo de novo é acrescentado ao que já existia, ou seja, o espírito do mundo ( ou realizações humanas) progride com a humanidade sempre para a frente, para o absoluto, para uma consciência cada vez maior de si mesmo. Primeiro, o espírito do mundo se conscientizaria de si mesmo no indivíduo; depois, num nível mais elevado dessa consciência, na família e na sociedade, e, finalmente, atingiria a forma mais elevada do autoconhecimento na razão absoluta, ou seja, na arte, na religião e principalmente na filosofia.


Afirma ele:

‘A verdade é o todo. Mas o todo não é senão essência que se conclui por seu desenvolvimento. Há que dizer do absoluto que ele é essencialmente resultado, que ele não é senão por fim o que ele é em verdade, e é nisto precisamente que consiste sua natureza de ser sujeito atual ou Devir de si.’

E é esse mesmo sentimento quase otimista, de crença em alguma coisa para a qual seguir, e que nega tudo o que contrariamente houver sido dito com o intuito de rotular-se Machado de Assis de pessimista, que encontramos, mais uma vez, em texto do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas:

‘A justiça, cujo advento nos é anunciado em versos subidos de entusiasmo, a justiça quase não chega a ser um complemento, mas um suplemento; e assim como a teoria da seleção natural dá a vitória aos mais aptos, assim outra lei, a que se poderá chamar seleção social, entregará a palma aos mais puros. É o inverso da tradição bíblica; é o paraíso no fim.’

Estas palavras, nas quais fica bastante evidente a importância da qualidade, da pureza de cada homem na construção de uma sociedade, apontam claramente para a possibilidade de se participar ativa e conscientemente do processo de seleção a que estaríamos submetidos, sob o prisma de qualquer evolucionismo. Essa participação poder-se-ia dar, por exemplo, apenas ‘trocando-se a orientação no tempo para um absoluto incognoscível (Spencer) por uma orientação no tempo para um absoluto místico ( Teilhard Chardin)’.

Tal participação, que parece ser nada mais do que a busca permanente de crescimento moral e espiritual, a partir da tomada de consciência quanto a nossas piores mazelas, aponta certamente para a liberdade. Liberdade que toda a obra machadiana, ao instigar e provocar a lucidez dos homens, parece ter como objetivo último e final.

Afinal, talvez o homem seja mais covarde do que mau. Um dia, descobriu que poderia mentir e lucrar com isso, quem sabe um choro para galgar um colo? E tornou-se um grande mentiroso... Mas o pior aconteceu quando intuiu que os outros haviam descoberto a mesma coisa: desconfiado, é provável que, desde então, através dos séculos, venha buscando proteção em coisas como dinheiro e poder...

A verdade é que o ser humano, ao longo da História, tem se mostrado capaz de muitas coisas terríveis em função de sua enorme insegurança. Insegurança essa que acabou ganhando contornos dos sete pecados capitais, com destaque para a louca VAIDADE... E, tal qual o alienista do conto, cada um vai projetando nos outros suas próprias imperfeições e protegendo-se delas... Só o despertar de uma aguda consciência para lançá-lo na busca de seus melhores aspectos, passando a projetá-los também em seu vizinho...

Mudar-nos para mudar a sociedade, parece-nos a lição máxima de nosso mestre, Machado de Assis...

'Ao vencedor, as batatas!', afirmava Spencer, referindo-se à sobrevivência, à detenção do poder advindo da força, à posse de mais bens e alimentos.

No entanto, qualquer vencedor, submetido à seleção natural, em dado momento, pode deparar-se com aquele que venha rendê-lo, apossando-se de sua coroa. E esta, decerto, deve ser a maior das angústias humanas: o medo, a insegurança, a expectativa...

'Ao vencedor, as batatas!', tendo em vista a "seleção social" imaginada por Machado de Assis, um dia haveremos de poder declarar. E as batatas concedidas ao "puro" não serão passíveis de serem retomadas, pois são elas a simples consciência do que um dia alguém declarou sobre, apesar de poderem, a qualquer momento, fazer-nos mal nessa batalha permanente pelas batatas spencerianas, nada nem ninguém pode tornar-nos maus... E esse sempre será o maior de todos os trunfos.”

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

NOSSO LAR

OS COMENTÁRIOS ABAIXO SE REFEREM AO FILME “NOSSO LAR” E NÃO AO LIVRO DE MESMO NOME PUBLICADO HÁ MUITOS ANOS.

Sinceramente, “Nosso Lar” é uma decepção enorme. Acredito que não só para mim que, apesar de espiritualista, não me posso dizer espírita, mas também para os espíritas desejosos de abordagens artísticas mais criativas para a doutrina que já conhecem bem.

Vamos falar, por exemplo, das metáforas utilizadas tanto para o lado do “mal”, quanto para o lado do “bem”, nos quais transitam os personagens - todos muito pouco consistentes - da trama baseada no livro de Chico Xavier...

Lama, escuridão, abandono e pobreza absoluta recepcionam os que tenham uma dívida grande com a espiritualidade... Belas construções e belos jardins; bons – ainda que frugais – alimentos; e excelentes “hospitais”, além de muita claridade e cor é o que podem esperar encontrar aqueles que estejam mais perto de Deus, por haverem se comportado melhor aqui na Terra.

Pois chego à conclusão de que “Nosso Lar” pode ser considerado, além de tudo, um bocado preconceituoso. Deve ser justamente porque associamos ao bem as belas coisas exteriores acima citadas que acabamos em nossa sociedade aceitando que os ricos, fartamente servidos de todas elas, façam o que bem entendam de tudo e de todos a sua volta. Assim, a verdade é que, em Nosso Lar, como aqui, pode parecer que Deus esteja do lado da beleza e da riqueza como as conhecemos...

Isso para não falarmos no fato de que - por, nos anos 30, a cidade a caminho do céu apresentar o aspecto de nossas cidades contemporâneas, inclusive pelo uso de computadores - o espectador mais desprevenido pode concluir, ainda que amorfamente, sobre estarmos hoje, enquanto humanidade, mais evoluídos espiritualmente, mais próximos de "Nosso Lar" do que a família do médico André Luiz à época do registro do filme. O que seria, sabemos bem, um disparate, pois, ao contrário, quanto mais evoluímos técnica e cientificamente, mais parecem pulular, a nossa volta, a maldade, o egoísmo, a hipocrisia e a competição.

E pasmem: do lado “bom”, no filme, ainda encontramos ministérios e ministros... E não há nada mais capitalista do que a vida depois da vida lá, em “Nosso Lar”, onde circula espécie de moeda, que deve ser acumulada, e ouvimos - em tom panfletário - alguns moradores da cidade citarem o número de anos levados para adquirirem sua casa “própria”... O que no mínimo pode ser contraditório, na medida em que esperamos justamente que os há mais tempo ali chegados demonstrem menor dependência dos valores terrenos...

Fato é que o filme nos leva a crer que os sonhos daqui também continuam sendo os sonhados por lá... Mais falta de imaginação, impossível!

Quando será que cineastas e roteiristas começarão a imaginar um “depois da morte” desvinculado dos valores, hábitos e formas da medíocre vida humana?

Deixo uma sugestão e, se quiserem, podem me chamar que colaboro na construção de um bom roteiro... Que tal imaginarmos algo assemelhado àquela historinha que corre de boca em boca por aí e que já nem sei mais onde a ouvi pela primeira vez? Aquela historinha que conta que, tendo sido uma visita levada a conhecer o céu e o inferno, surpreendeu-se ela por não ver qualquer diferença entre um e outro lugar, uma vez que ambos, à primeira vista, ofereciam os mesmos recursos, a mesma estrutura, as mesmas cores... E até os mesmos problemas. Por exemplo: todos, tanto em um, quanto em outro lugar, apesar da bela figura, tinham os braços tortos, a lhes impedirem de levar o talher com o delicioso alimento à boca. No entanto, enquanto no inferno a fome, por conta disso, era uma ameaça constante, no céu, superaram o problema rapidamente: sentados em torno de uma imensa mesa redonda, cada membro daquela comunidade alimentava seu vizinho da direita e era alimentado pelo companheiro da esquerda.

Perceberam o espírito? Pois é, desse espírito, podemos fazer muitas histórias.

E uma vez que partamos do princípio de que as individualidades permaneçam intactas depois da morte e que queiramos romancear a vida entre uma e outra reencarnação, deveríamos ser capazes de imaginar a busca de crescimento espiritual, inclusive os dramas de consciência comuns ao processo, de forma mais sutil e delicada.

Afinal, todos nós sabemos que o inferno, o lodo e a imundície habitam o interior das "piores" pessoas – pobres ou ricas -, assim como o céu, a paz e a pureza transparecem no olhar de nossos "melhores" representantes. Os cineastas precisam encontrar maneiras de representar isso que não sejam tão óbvias quanto em “Nosso Lar”. Pois certo é que um filme de ficção espírita ou espiritualista não pode ser metaforizado pela aparência material das coisas, como o são os de ficção científica.

Assim é que acabei de me convencer de que um grande sucesso de bilheteria imediatamente ( sem tempo para o boca-a-boca ) após o lançamento de um filme nem sempre é sinal de que ele seja bom. Pode ser que o tema instigue – como acredito que seja o caso de “Nosso Lar” - e a propaganda seja boa. Apenas isso.

Em relação a “Nosso Lar” ainda, suponho que a grande maioria dos espectadores espíritas saia decepcionada do cinema, ainda que de maneira inconsciente, confusa. Pode ser que digam que gostaram do filme porque o filme é exatamente o que esperavam que fosse. Mas talvez saiam insatisfeitos, porque no fundo - preservada sua fé -, como qualquer um de nós, eles esperam que uma obra de arte acrescente alguma coisa a suas reflexões de sempre sobre o maior de todos os temas da vida humana.

Os demais espectadores ( exceto talvez os mais velhos e apegados à vida como a conhecemos ), por outro lado, talvez se decepcionem por esperarem histórias que lhes falem da unidade entre todos os homens e da permeabilidade entre eles de suas piores e melhores características; por esperarem histórias que lhes tragam notícias da evolução da humanidade enquanto todo, ao invés do progresso absolutamente estanque, individual, de cada espírito em relação a cada outro, como vemos em "Nosso Lar".

Enfim, não tenho certeza de haver lido o livro de Chico Xavier, mas o que sei sobre o respeitado médium é que foi um homem que fez questão de viver na mais absoluta simplicidade, completamente desapegado dos valores materiais. Os jardins, o sol, a beleza, ele fazia questão de criá-los todos os dias dentro de seu coração, ensinando, com seu testemunho de vida, que a paz é uma postura diante da vida e não uma condição palpável.

Obs. O melhor do filme: nuances do relacionamento médico/cliente.

*Acabei só me lembrando de revisar esse texto ( geralmente faço isso durante os primeiros dias após escrever e publicar cada um deles ) hoje, 16/10. Infelizmente, havia, mais do que de costume, aqui, uma série de coisinhas - vírgulas e "s" - a serem acertadas.
De qualquer modo, a leitura agora flui bem melhor.