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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

POR UM MUNDO MELHOR! SEMPRE

Se procurarem “março/10” no arquivo do blog, verão que, no período, dentre outros, escrevi dois textos ( “Adam Smith e Lula” e “A divisão social do trabalho” ) em torno de texto escrito pelo economista Rodrigo Constantino e publicado então pelo jornal “O Globo”.

Lendo os textos, perceberão que, como sempre, falo diretamente do meu coração, sobre minhas impressões; quase “intuitivamente”, como costuma dizer um bom amigo...

A verdade é que há muito tempo descobri que os mesmos livros, os mesmos pensadores, os mesmos fatos podem ser usados tanto por aqueles que defendam, quanto pelos que condenem uma ideia... Isso, aliado à consciência que tenho do quanto – friso: não creio que seja o caso do articulista em questão – convivemos com “intelectuais” ( estudiosos de resumos de livros, incapazes de formular uma teoria própria? ) que se garantem na ignorância alheia, é o que me faz cada vez mais valorizar o como nosso coração receba qualquer coisa que nos tentem fazer engolir como verdade absoluta...

Bem, o fato é que foi apenas alguns meses depois de escrever tais textos que, lendo “A Corrosão do caráter”, de Richard Sennett, registrei o quanto minha intuição, ao rebater a análise feita por Constantino em relação ao pensamento de Smith, poderia haver sido certeira:

“ ‘A riqueza das nações’ é um livro muito grande, e os proponentes da nova economia da época de Smith tenderam apenas a referir-se a seu início dramático e otimista. À medida que o texto avança, porém, torna-se sombrio; a fábrica de alfinetes vira um lugar mais sinistro. Smith reconhece que a decomposição das tarefas envolvidas na fabricação de alfinetes condenaria os trabalhadores individuais a um dia de um tédio mortal, hora após hora passadas num serviço mesquinho. Em certo ponto, a rotina torna-se autodestrutiva, porque os seres humanos perdem o controle sobre seus próprios esforços; falta de controle sobre o tempo de trabalho significa morte espiritual.

Smith acreditava que o capitalismo de sua época cruzava esse grande abismo; quando declarou que ‘os que trabalham mais obtêm menos’ na nova ordem, pensava mais nesses termos humanos que em salários. Num dos trechos mais sombrios de ‘A riqueza das nações’, ele escreve:

‘No progresso da divisão do trabalho, o emprego da parte muito maior daqueles que vivem do trabalho... passa a limitar-se a umas poucas operações muito simples; frequentemente uma ou duas... O homem que passa a vida realizando umas poucas operações simples... em geral se torna tão estúpido e ignorante quanto é possível tornar-se uma criatura humana.’”

Em 28 de dezembro último, também no jornal “O Globo”, li outro texto de Constantino. Intitulado “A ditadura do politicamente correto”, o artigo acaba fazendo importante divulgação do livro “Contra um mundo melhor”, do filósofo Luiz Felipe Pondé.

Escabreada, por conta de minha experiência anterior com as palavras de Rodrigo Constantino, e não tendo ainda lido qualquer dos textos – publicados pela “Folha” – de Pondé, fiquei curiosa: estaria eu mais uma vez diante de uma pessoal interpretação do economista?

Assim, acabei procurando pelo referido livro, cujo título – intrigante - poderia ser mero jogo de palavras, e, não o encontrando, resolvi dar uma olhada na internet, ver se conseguia ler alguma coisa do filósofo.

Pois dessa vez parece que Constantino apenas abraça as ideias de alguém que realmente com ele tem afinidades...

Sabem?, às vezes tenho a impressão de que há mesmo aqueles intelectuais dispostos a fazerem contorções reflexivas ( como a babá que sacode - ao invés de balançar suavemente - o bebê que resiste ao sono? ), no sentido de atordoar aqueles que precisam de ajuda para não despertarem de uma vez; aqueles que se autoenganam e se esforçam para não compreenderem que toda infelicidade e insatisfação que os habitam se originam mais de sua incapacidade de perceber-se parte do todo social do que do fato de se sentirem ameaçados em seu conforto pelas diferenças – que fazem questão de manter? - que os circundam.

A verdade é que alguns dos artigos que pude ler do filósofo chegam a assustar mais do que qualquer um dos que tenha lido de seu divulgador... De forma bastante clara, em defesa do que seriam os interesses de uma classe média/alta inconsciente e alienada(?), ali podemos encontrar muitas ideias, como as que passo a comentar do texto intitulado “A oligarquia de esquerda”, publicado pela “Folha”:

1) “Mas antes da pergunta ‘o que é justiça social?’, podemos perguntar quem seriam ‘os paladinos da justiça social’. Seria gente honesta? Ou aproveitadores do patrimônio dos outros e da ‘matéria bruta da infelicidade humana’, ansiosos por fazer seus próprios patrimônios à custa do roubo do fruto do trabalho alheio ‘em nome da justiça social’?”

Ora, o raciocínio capitalista que nos faz acreditar que todos estejam, o tempo todo, querendo “lucrar” é justamente aquele que a verdadeira justiça social tenderá a derrubar.

Certamente, Pondé, aqueles que falam e realmente almejam ( os outros simplesmente não são de esquerda, mas de uma espécie de direita disfarçada ) a talvez utópica justiça social estão falando de um ideal a ser perseguido, e, em um ideal, não cabem os possíveis perversos, dispostos a qualquer coisa em nome de qualquer cifra.

Por outro lado, já que o filósofo apenas conjectura, conjecturemos também: todo patrimônio é fruto de trabalho honesto? E a exploração do trabalho humano não seria roubo? Como se constituíram as primeiras propriedades particulares que têm sido transmitidas aos herdeiros, geração após geração?

Sem falar que, sabemos bem, a “matéria bruta da infelicidade humana” potencialmente manipulável não é encontrada apenas dentre a população menos favorecida... Toda a injustiça que nos cerca é evidente sintoma de que toda a sociedade – inclusive os seus membros melhor aquinhoados, acometidos por tantos vícios, doenças e depressões – vai bastante mal, e de que parte dela - sacudida por seus “intelectuais-babás”? - ainda não acordou o suficiente para perceber que “justiça social” é também benefício para seus próprios filhos.

Não apenas porque eles poderão transitar por um mundo mais seguro, mas porque quem insere uma vida digna para seus próximos em sua concepção de mundo desejável automaticamente se vê inserido num sentimento libertador de humanidade, que certamente não vale a pena tentar explicar àqueles que parecem haver escolhido ser tradutores dos agonizantes e mais egoístas valores de nossa sociedade.

2) “Outro filósofo britânico, Locke (século 17), chamava a atenção para o fato de que sem propriedade privada não haveria qualquer liberdade possível no mundo porque liberdade, quando arrancada de sua raiz concreta, a propriedade privada (isto é, o fruto do seu esforço pessoal e livre e que ninguém pode tomar), seria irreal.”

Como imagino ocorra com a maioria dos leitores, não conheço o pensamento de Locke a ponto de poder saber o que quis o filósofo dizer com tais palavras, inclusive porque, como vimos em relação ao pensamento de Smith, pode ser bastante complicado pinçarmos uma frase ou outra de alguém que viveu para pensar e para contradizer a si mesmo sempre que necessário...

Mas quem falou que justiça social implica necessariamente em abolirmos a propriedade privada?

Questionar, no entanto, o acúmulo de riquezas resultante da exploração do trabalho e das fragilidades de outros seres humanos, sim, faz.

Que liberdade seria afinal aquela que vive de escravizar o próximo em múltiplos sentidos? Só pode ela resultar no aprisionamento dos proprietários a suas propriedades; só pode ela resultar na maior infelicidade que pode acometer um ser humano: desumanizar-se ( vide no blog o texto “ O menino do pijama listrado”, em julho/09 ).

E o que me assusta mais ainda é pensar que não seja difícil confundir alguém com textos como os que li de Pondé...

Outro dia presenciei uma conversa na qual duas jovens mulheres diziam a uma terceira que ela, por ter um certo padrão de vida, por gostar de certos confortos, não poderia defender a justiça social como parecia querer fazer... Segundo elas, que pareciam querer calar dentro de si a inquietação provocada pelas palavras da amiga, ser socialista – ou qualquer coisa que o valha – era escolher a pobreza como estilo de vida. E ponto.

Ora, ora, justiça social, sabemos bem, não significa igualarmos todos pelo padrão mais baixo. Justiça social a longo prazo é na verdade garantir a todos direitos não apenas básicos, mas também aqueles de escolhas mais sofisticadas ( vide o pensador indiano Armatia Sen ), como, por exemplo, o consumo de algumas iguarias...

Por outro lado, gostar de conforto e de belas coisas certamente não torna qualquer um de nós mau. A diferença entre as pessoas não se evidencia ao observarmos aquilo de que gostam ou aquilo que usam. Mas aquilo que são capazes de fazer para obterem o que gostariam de possuir ou usufruir. Ou aquilo de que são capazes de abrir mão em nome de abstrações como solidariedade e dignidade...

E consciência.

Em um mundo socialmente justo, Pondé, poderá continuar a haver ricos, até riquíssimos, mas a distribuição de riquezas se dará de maneira humanizada, não havendo lugar para as misérias material e humana que nos cercam...
O caminho? Reforma tributária... Reforma agrária... Reforma política...

Reforma humana.

3) “Engana-se quem acha que propriedade privada seja apenas "sua casa". Não, a primeira propriedade privada que existe é invisível: sua alma, seu espírito, suas ideias. É sobre elas que a oligarquia de esquerda avança a passos largos. Em nome da "justiça social" ela silenciará todos.

Qualquer homem que pense – até o mais rico entre nós, como temos visto acontecer -, que tenha ideias próprias e não apenas de classe; qualquer homem que tenha coragem de ir fundo dentro de si mesmo, descobre-se tão próximo de todo e qualquer outro ser humano que trabalhar pela justiça social pode se tornar a única forma através da qual possa se sentir realmente livre.