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quarta-feira, 14 de julho de 2010

"Capitalismo: uma história de amor"

Assisti a todos os documentários do cineasta Michael Moore.

Todos geniais. Mas nenhum que se compare ao último, “Capitalismo: uma história de amor”. Esse só podemos comparar ao excelente "The Corporation", do qual Moore apenas participou.

"Capitalismo..." começa traçando um paralelo entre a decadência do Império Romano e a América de Bush.
E prova, em cada um de seus minutos, que a decadência americana, das duas, pode ser a pior; e mostra que muita coisa precisa ser feita – ele convoca cada um de seus espectadores nesse sentido - para evitar-se o definitivo caos.

Se assistir às entrevistas nos "especiais", verá que, em seu brilhante depoimento, Chris Hedges, do New York Times, traça também um paralelo entre a ascensão e a queda de todos os imperialismos, como, segundo ele, devem ser considerados os Estados Unidos da América. Ele cita Marx, segundo o qual o capitalismo transforma tudo em mercadoria, inclusive os recursos naturais e os seres humanos, concluindo: “O capitalismo irrestrito ou não regulamentado está relacionado a sociedades que se autocanibalizam”.

Dentre outras coisas, o documentário trata de:

1) Seres humanos despejados das casas nas quais moraram por 20, 40 anos: nenhuma pena ao tomarem os imóveis daqueles que não conseguiram fazer frente aos absurdos termos dos contratos assinados em renovadas e incentivadas hipotecas. Enquanto amigos dos diretores das financeiras, mesmo já sendo ricos, segundo Moore, recebiam empréstimos e assinavam contratos suaves, dos quais as taxas extorsivas eram abolidas e os descontos multiplicados.
Moore lembra Thomas Jefferson, que dizia, em 1816: “Eu sinceramente acredito que os bancos são mais perigosos do que exércitos de prontidão”.

2) Importantes empresas que fazem seguros de vida milionários para seus funcionários, colocando a si mesmas como beneficiárias e não as famílias dos pelos patrões chamados “caipiras mortos”.

3) Demissões.

4) Derivativos.

5) Baixíssimos salários para algumas categorias, como a dos pilotos.

6) “Golpe de estado financeiro”. Acordos abjetos entre o sistema financeiro e o governo.
Wall Street no comando.
Wall Street recebendo ajuda dos cofres públicos. Enquanto o povo... nada.

7) Como só resta aos melhores alunos das melhores universidades trabalharem para os bancos, ao terminarem seus cursos – ficando longe de trabalhos nos quais poderiam utilizar todo o seu potencial -, caso queiram pagar a dívida milionária contraída com esses mesmos bancos, que - quase uma armadilha - financiaram seus estudos.

8) Como em Wilkis-Barre, Pensilvânia, juízes e empresários, após fecharem o reformatório público, associaram-se para construir uma casa de nome “agradável”: “Assistência à Criança da Pensilvânia”.
Empregaram 8 milhões de dólares na construção, que o condado alugou por 58 milhões.
Como precisavam de delinquentes para dar utilidade e movimento ao projeto milionário, outros juízes foram cooptados: eles precisavam aumentar a taxa de condenações.
Segundo Michael Moore, os juízes receberam mais de 2,6 milhões por mandarem internar o menino que jogou um bife em cima do padrasto durante o jantar, a menina que brigou com a melhor amiga num shopping, a adolescente que criou uma página na internet para criticar a vice-diretora da escola, que considerava rígida e sem senso de humor... "Cerca de 6.500 jovens foram condenados injustamente."
E o empresário logo aplicou seus milhões na compra de um jatinho e de um iate batizado como “REEL JUSTICE”.

9) Memorando secreto do Citibank sobre seu plano de controlar o mundo.
Em 2005 e 2006, conta-nos o cineasta, o Citgroup criou 3 análises secretas para seus maiores investidores.
Diziam que os Estados Unidos não eram mais uma democracia, mas uma plutonomia: "uma sociedade controlada exclusivamente por e para o benefício do 1% mais rico da população.”
O memorando celebrava essa diferença crescente e o fato de poderem se considerar uma aristocracia.
Aristocracia essa que poderia ser abalada apenas se a sociedade viesse a exigir uma parcela mais justa do bolo servido. Uma improvável revolta dos “caipiras”.
Lamenta o documento que o povo, que são 99% da população, tivesse, como eles, os privilegiados, direito ao voto. Mas comemora a triste realidade: os caipiras não usariam sua força porque estavam subjugados a outra muito maior. Uma força maior mesmo do que o “sonho americano” - que parece agora meio desfeito pelos últimos acontecimentos. Eles contavam era com a ilusão sob a qual vivia cada um daqueles que constituíam os 99% restantes da população de seu país. Ilusão essa que consistia em acreditarem piamente na possibilidade de, se continuassem tentando, poderem um dia usufruir de parte de toda a riqueza, de todos os benefícios e conforto que eles, o 1%, atiravam-lhes na cara todos os dias.
Sua estratégia, então, teria de ser fomentar essa crença, continuar colocando a cenoura à frente dos caipiras, para que eles continuassem puxando a carroça. Dispostos a não reclamar das posturas erradas, porque dispostos, aqui e ali, a errar também.

Nesse ponto, tive de me lembrar de um filme que quase deixo de comentar no blog: “A Caixa”.
É a história de um casal que recebe uma caixa com um botão vermelho e as instruções: se apertarem o botão, receberão um milhão de dólares, mas terão de conviver com a certeza de que, no exato momento de sua escolha, ao apertarem o botão, alguém, certamente um DESCONHECIDO, irá morrer.
Após não muito grande hesitação, a mulher aperta seu futuro: no dia seguinte, o homem que lhes vai entregar a mala com o dinheiro informa-os de que a caixa naquele momento mesmo seria levada para outro casal. Casal esse do qual eles eram certamente DESCONHECIDOS.

A verdade é que "A Caixa" teria tudo para ser um bom filme ( mas o diretor parece se haver perdido em algum momento ), partindo dessa proposta: mostrar como cada homem, mergulhado até o pescoço nessa ânsia capitalista de ter, ter, ter, esquece por completo qualquer sentimento altruísta. E a cada vez que um homem decide egoistamente, sem querer saber como seus atos irão afetar outras pessoas, sobre qualquer coisa em sua vida, ele certamente se está esquecendo de que, naquele exato momento, várias outras pessoas estão agindo da mesma forma, em relação a uma infinidade de coisas que podem, sim, acabar por atingi-lo de alguma forma.

Quando empresas e governos se associam em função de interesses escusos... Quando um homem assina um contrato superfaturado, desvia dinheiro da saúde ou da educação, pode estar causando danos importantes à vida de muitos jovens carentes. Inclusive, armando-os. Inclusive, matando-os e a suas famílias.
Quantos homens agem assim todos os dias, ao decidirem apertar o botão vermelho de suas caixas, num assustador "dane-se"?

Quando um jovem delinquente se vê, em seu descaminho, diante da decisão de apertar ou não um gatilho - botão vermelho da caixa que a ele é apresentada -, não raro os criminosos do colarinho branco - que, muitas vezes, conseguem permanecer autoenganados, evitando a consciência e as consequências do resultado mortal de seus atos - estão a seu lado. Em forma das privações que possam haver imprimido àquela vida. Em forma dos valores que, através de suas escolhas e posturas, sempre de cima para baixo, ajudaram a impor à sociedade como um todo.

Ao bandido armado, sabemos, horrorizados, qual destino oferecer: cadeia.

Mas até quando a sociedade vai se autoenganar, acreditando combater a corrupção apenas exigindo fichas limpas de candidatos a mandatos políticos?

O criminoso do colarinho branco está muito perto do homem comum. E deve ser reconhecido todas as vezes em que propuser uma ação premiada em prejuízo de um inocente ou da sociedade. Ele deve ser reconhecido sempre que seduzir com sua boa aparência e seu poder (poder inclusive de recompensar os que se sujarem para mantê-los limpos e cheirosos) para sutilmente levar outros a ajudá-lo na prática de cada uma das ações necessárias a seus objetivos finais.
Acredito que cada grande criminoso conte com a colaboração de muitos dos pequenos aspirantes a seu posto. Inclusive dentre aqueles "caipiras" correndo atrás da cenoura lembrados no memorando do Citibank citado por Michael Moore.

Se, ao invés de namorar com o poder, cada homem comum passasse a se preocupar de fato com a sociedade que vai deixar como herança para seus netos... Ajudaria muito se, em lugar de colaborar com os criminosos do colarinho branco - por ação ou omissão - passasse a realmente se indignar com a injustiça, com o abuso de qualquer tipo de poder.
Se cada funcionário ou familiar próximo a cada um desses bandidos perfumados tivesse coragem de admitir que não é - como costumam justificar suas ações -pensando no futuro dos filhos que resolvem facilitar qualquer tipo de atitude duvidosa, já seria meio caminho andado na direção de uma sociedade mais justa. Mas certamente precisa-se de muita coragem para olhar-se por dentro e perceber que, em um quase consciente autoengano, em uma tola vaidade, no fútil desejo de compartilhar poder e benefícios, é que, com agrados e servilidade, colabora-se todos os dias no sentido de que objetivos nada admiráveis possam ser atingidos.

A verdade é que se, de repente, em lugar da costumeira reverência e respeito encontrados a sua volta, os bárbaros de gravatas encontrassem expressões de nojo e desconfiança, duvido muito que continuassem a seguir seu caminho tão confortavelmente autoenganados. Tenho certeza de que acabariam sendo obrigados a, diante do espelho, tirar a cara de pau.

Porque a grande verdade é que o que todo ser humano quer é admiração e amor. E não duvido de que muitos de nossos criminosos de grife hajam buscado o poder sobre as pessoas como forma de seduzi-las... Quem sabe se lhes déssemos a chance de perceberem que escolheram o caminho errado, ao confundirem reverência, "puxação de saco" e medo com o sentimento fraterno, ainda tenham oportunidade de dar outro rumo a suas vidas?

Pode parecer infantil de se dizer, mas precisaríamos nos convencer em definitivo de que adianta, sim, começarmos a reformar o mundo a partir de nós mesmos. Se você age egoistamente, pensando que todos agem assim, imagine que alguém, ao detectar em você um comportamento altruísta, possa vir a querer imitá-lo também. Em sociedade, esse efeito é imediato...

Se, ao ler esse texto, por exemplo, sentiu um calorzinho no peito chamado esperança, é porque no fundo você acredita no que lhe digo.
Coragem!

Mas voltemos a Michael Moore. Não é que, em alguns momentos, ele nos parece dizer que a humanidade pode não estar de todo perdida?

E ele nos fala de alguns episódios recentes nos quais o povo, unido, pôde se considerar vencedor.

E ele nos lembra do Dr. Salk, inventor da vacina contra a poliomielite, que se recusou a patentear seu invento, dizendo que era ele resultado de seu trabalho, pelo qual havia sido bem remunerado como professor e pesquisador da universidade.
Estava ele satisfeito por ver o fruto de seu esforço tornando-se patrimônio da humanidade.

E Moore nos mostra que existem empresas, das quais os presidentes e diretores, ao invés de robôs gananciosos, são, como o Dr. Salk, seres humanos sensíveis, que sabem abrir mão daquilo de que não precisam em benefício de todos aqueles com os quais trabalham. Todos os funcionários nessas – ainda raras – empresas ganham salários igualmente dignos.


Na verdade, veríamos despontar rapidamente uma sociedade mais justa se cada um dos mais ricos abrisse mão apenas de parte daquilo de que não precisa, ao invés de vorazmente arremessar-se em luta ridícula para obter o primeiro lugar dentre os mais abastados.

Será que precisam chegar lá para descobrirem o que o homem mais rico do mundo, Warren Buffett, descobriu? Pois, segundo Moore, em 2007, ele declarou:

“É luta de classes, minha classe está ganhando, mas não devia.”

Enfim, mais uma vez desligo a televisão com uma espécie de alegria por poder contar entre nós com seres humanos como esse cineasta determinado a fazer a sua parte em prol de um mundo melhor para todos.
É emocionante ouvi-lo dizer:

“Eu me recuso a viver em um país como esse. E não vou embora.”

sábado, 10 de julho de 2010

CRIME HEDIONDO

Toda sociedade precisa trancafiar seus monstros. Mas depois ela não pode simplesmente lavar as mãos, fingindo que não os gerou no próprio ventre.

Em “O Efeito Sombra”, Deepak Chopra nos fala desse inconsciente coletivo no qual estamos mergulhados, convencendo qualquer um de sua existência através da descrição do funcionamento de uma de nossas glândulas:

“O que você chama de ‘eu’ na verdade é ‘nós’ em grau muito mais abrangente do que você imagina.
A prova pode ser encontrada em seu corpo. O sistema imunológico é um projeto coletivo. Sob seu osso peitoral há uma glândula chamada timo, que produz os anticorpos necessários para que você resista às infecções de germes e vírus invasores.
Quando você nasce, seu timo é subdesenvolvido. Ao longo do primeiro ano de vida, você depende da imunidade do corpo de sua mãe. Mas o timo começa a crescer e amadurecer, até chegar à função e ao tamanho máximo, aos doze anos; depois vai encolhendo. Durante o período de crescimento, o timo lhe dá anticorpos para as doenças que atingem toda a raça humana. Você não tem de ser infectado por doença alguma; a herança da imunidade é coletiva – e, ao mesmo tempo, continuamos a aumentar o depósito conforme deparamos com novas enfermidades.”

Exatamente da mesma forma, segundo Chopra – via Jung, cada um de nós traz na alma todos os arquétipos, todos os sentimentos - bons e maus - que possam perpassar a alma de qualquer outro ser humano. Somos uma construção coletiva antes de nos individualizarmos através do autoconhecimento.

Assim é que a única coisa que pode proteger a humanidade de seus piores aspectos é sem dúvida a CONSCIÊNCIA. Qualquer outro tipo de tentativa resvalará para resultados duvidosos, geralmente regidos pela SOMBRA, que passa a abrigar, em cada criatura em particular e na sociedade como um todo, suas piores facetas. Facetas essas preparadas para assumirem o controle a qualquer momento.

Enquanto indivíduos em particular e a sociedade como um todo maquiarem suas verdades, ao invés de, sempre sob luz suficiente, optarem pela dedicação a seus melhores aspectos, continuaremos sendo surpreendidos e assustados pelas atitudes daqueles mais inconscientes que, ao se mascararem à imagem de outros mascarados, tão longe passam a estar do melhor de si mesmos que se tornam núcleos perfeitos para a materialização do arquétipo maldade através de seus atos abomináveis.

São as vítimas do “efeito sombra” desgraçando outras vítimas em seu caminho de escuridão.

Toda sociedade precisa trancafiar seus monstros: eles não podem por em risco as pessoas a sua volta. E muitas vezes, desgraçadamente, não há sequer como esperarmos que tais monstros possam ser recuperados. Sendo que, para alguns deles, tamanho o grau da perversidade de seus atos, sequer podemos esperar qualquer tipo de humanização através de explicações advindas, por exemplo, do relato de um passado triste.

Mas não dá para pensarmos que os criminosos de todos os tipos, cujas histórias nos são apresentadas várias vezes ao dia, sejam entidades completamente separadas do corpo da sociedade. Não dá para, convenientemente, pensarmos que todos eles se desviaram única e exclusivamente por seguirem sua intrínseca má índole.

Infelizmente, é no que a sociedade tenta acreditar. Aproveitando-se inclusive, como agora, no caso do goleiro Bruno ( vamos considerar aqui a possibilidade de sua culpa ), da queda de certos ídolos tornados bandidos para, por contraste e por alguns momentos, sentir-se do “outro lado”, do lado bom. Fortalecendo sua visão de mundo, maniqueísta, da perfeita divisão entre o bem e o mal.

Por outro lado, a sociedade tenta também culpar as vítimas de cada criminoso com o igual objetivo de conseguir evitar o mergulho nas próprias entranhas, que a obrigaria a deparar-se com a origem de tanta violência e barbárie.

A verdade é que também aquilo que se possa apontar como “provocação” em cada agredido ( como fazem muitos, no caso em tela, levantando a possibilidade de Eliza haver sido uma “interesseira garota de programa” ) pode encontrar suas causas primeiras no âmago dessa mesma sociedade constituída por cada um de nós.

Quais são os valores abraçados por muitos de nossos mais bem situados membros? Dinheiro e poder.
Quem não nasceu em berço de boa madeira e não teve boas oportunidades e educação permanece, como cada outro cidadão, dia e noite, à mercê das novelas, das propagandas, da vida a lhes dizer que não são bons o bastante e que, se quiserem um dia sê-lo, precisam vestir, usar, calçar, ter...
Sendo frágeis de caráter e sabendo ou intuindo o quanto algumas de nossas elites acumularam fortuna às custas de expedientes não muito admiráveis, não será difícil acreditarem que precisam aproveitar qualquer “oportunidade” para conquistarem aquele status que - parece-lhes – virá embrulhado em amor e respeito.

Se nossa sociedade, através das escolhas e das posturas de seus mais respeitados representantes, mostra o tempo todo a suas jovens mais desprotegidas aquilo que tem valor para eles – dinheiro, poder e beleza -, acreditando elas ser seu corpo jovem a única moeda com a qual podem contar para obter os outros dois itens, não é difícil imaginar como muitas delas correrão atrás de seus sonhos.

Partindo-se do princípio de que fosse mesmo esse o caso de Eliza, diante da perspectiva acima, quem lhe teria coragem de atirar a primeira pedra?

E quanto ao goleiro e a seus ditos cúmplices medonhos? ( continuamos considerando aqui a possibilidade de que sejam culpados )

Foi conversando sobre essa história apavorante que eu, a socióloga Maria Lúcia R.Maia e a mestre em Criminologia Crítica Flávia Maia percebemos, em nossos corações, misturada ao horror, nada menos do que compaixão por essas criaturas duras, frias, animalescas, monstruosas.

Como deve ser horrível ser um deles! A verdade é que não dá para imaginar o que seja carregar dentro da alma manchas tão escuras, conviver com tantos fantasmas...

Não é triste ver como a vida humana vale pouco em uma sociedade como a nossa? Não é terrível ver como as pessoas se associam em nome de uma ação bárbara contra outra pessoa em troca de alguns trocados ou, quem sabe, pelo “orgulho” de se aproximar do poder, tornando-se cúmplices de uma celebridade? Não é apavorante ver o mal - todos os dias alimentado pela inversão de valores que fragiliza corpos e tritura almas - de repente se condensar em alguém?

Não conheço a história de vida do goleiro do Flamengo... E prefiro não conhecê-la, para que possamos delinear aqui uma possível imagem do ser humano que rompe de forma assustadora os limites da humanidade, atravessando as fronteiras que separam a pior das fantasias de como livrar-se de um “inimigo” para transformá-la em aterrorizante realidade. ( Objetivo: evidenciar a relação direta de algumas ações com os valores de nossa sociedade, sem, no entanto, pretender justificativas para sua crueldade. )

Menino pobre? Família não muito bem estruturada? Testemunhou tragédias? Sofreu discriminação em função da cor, da classe social? Passou privações? Foi humilhado? Teve como única oportunidade o futebol?

Pois então, de repente, sucesso e dinheiro lhe vêm bater à porta. E aquele menino, que não teve tempo de crescer por dentro, vê-se respeitado e reverenciado...

Fico pensando que, junto com a alegria que o menino Bruno - dentro dele – haja experimentado pela repentina receptividade de todos a sua volta, tenham-lhe também dominado outros sentimentos, alguns terríveis como o desprezo...
Como pode ser, afinal, que pessoas maltratem crianças carentes e batam palmas para homens correndo atrás de uma bola? Do que gostariam elas nele agora? Dos gols que negava ao adversário? Do dinheiro que ganhava? Do poder que começava a ter? Certamente não era “dele”.

Não são poucos os ricos de berço que perdem completamente os limites por desde sempre, lançando-se a um buraco sem fundo, poderem bancar todos os desejos que tenham... Não canso de escrever nesse blog sobre ricos e sua falta de consciência; sobre ricos e sua arrogância; sobre ricos e seu autoengano permanente; sobre ricos e seu vazio; sobre ricos pegos nessa armadilha dos valores por eles mesmos criada...

Mas não é difícil imaginarmos que o pobre tornado rico - se frágil de caráter e, principalmente, se, ao invés de amar, aprendeu a desprezar; se ao invés de conhecer-se, aprendeu a mascarar-se -, seja mais vulnerável ao abismo que se abre diante de todo aquele que pensa, psicopaticamente, tudo poder.

Acredito que Bruno possa haver caído dentro desse abismo.

E, como numa tragédia grega, o filho que tentou negar de todas as maneiras, inclusive, ao que tudo indica, matando sua genitora, foi o mesmo que, segundo testemunhas, parece de repente haver resolvido poupar do planejado assassinato.

Sendo comprovadas todas as denúncias, que receba a pena máxima cada um dos membros dessa macabra quadrilha.

Mas que a sociedade, ao invés de comemorar o encarceramento do “outro” perverso, recolha-se em profundas reflexões, certa de que esse outro é ela mesma.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Seletividade Punitiva e o Estatuto da Criança e do Adolescente

Com um ou outro trecho alterado pelo editor - assim, como segue -, este artigo acaba de ser publicado pelo Boletim da UFMG.
Não deixe de ir até lá para conferir esse e outros textos muitíssimo interessantes.

Em recente série de reportagens, o
jornal O Globo mostrou que os ex-
-colegas de um dos mais perigosos
bandidos brasileiros, ao contrário dele,
não enveredaram pelo mundo do crime.

A principal conclusão desse trabalho, em
linhas gerais, parece ser a de que a pobreza
não é fator determinante na formação
de um criminoso. E devemos dizer que,
à primeira vista, esse parece ter sido um
louvável esforço no sentido de modificar o
imaginário social, dentro do qual a pobreza,
em si mesma tão sofrida, acaba sendo
também preconceituosamente vista como
a grande culpada por toda a violência que
nos circunda.

Destacam ainda as matérias em
questão a importância da boa escola e a
presença interessada da família em garantir
proteção aos jovens contra as “armadilhas
da criminalidade”, sendo tomado como
exceção o bandido que, mesmo usufruindo
de tais privilégios, foi por elas capturado.

Nesse momento, somos obrigados
a nos perguntar se a verdade, ainda que
não seja dita com todas as letras, seria
que essa espécie de pobreza privilegiada,
que ainda consegue proteger de alguma
forma os seus, não deveria ser tomada em
um estudo à parte, uma vez que a outra,
completamente desprotegida diante de
uma estrutura social perversa, não pode
deixar de ser percebida como fator fragilizante,
a pesar imensamente toda vez
que um de seus jovens precisa tomar uma
decisão sobre sua vida.

Pois a importância da proteção que lhes
falta, e que é oferecida pelas famílias e pelas
boas escolas às classes privilegiadas e a essa
elite da pobreza, fica evidente, segundo a
socióloga Maria Lúcia R. Maia, no grande
número de rapazes que começam a trabalhar
bem tarde e se mantêm em perfeita
harmonia com a sociedade graças ao apoio
moral e material da família.

Em síntese, a série de reportagens
acaba nos levando a inferir que não seria
apenas Fernandinho Beira-Mar a encarnar
uma exceção em relação a seus colegas,
ao virar bandido. A exceção mais curiosa
constatada pelas reportagens nos parece
ser exatamente a existência de uma elite
a se destacar em relação a uma pobreza
completamente desamparada e sem qualquer
condição de, por sua vez, amparar
qualquer um dos seus, que ficam expostos
a muitos riscos.

Importante frisar também que os
criminosos vindos da riqueza e que desfrutam
de muito mais oportunidades do que
o criminoso Fernandinho Beira-Mar talvez
devessem ser tomados como exceções
tão desprezíveis quanto o bandido em
questão. E não se diga em seu favor que
bandidos do colarinho branco não matam,
pois, apesar de, na maioria das vezes, não
sujarem as próprias mãos de sangue, eles
acabam se envolvendo em assassinatos
de vários tipos, acabando biológica ou
moralmente com várias vidas.

Dias depois do destaque dado às
matérias aqui tratadas, no dia 14 de
junho último, deparamos, no mesmo
jornal, com um editorial a enfatizar a
necessidade de reformulação do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), que
está para completar duas décadas. Seria
pura coincidência?

São duas as preocupações, ou melhor,
pleitos desse veículo: a eliminação do dispositivo
segundo o qual o prontuário do
menor infrator é zerado quando completa
18 anos e a redução do limite da inimputabilidade
de 18 para 16 anos.

Justifica suas reivindicações, o jornal,
inacreditavelmente, com o fato de que
aproveitando-se “das imunidades conferidas
pela lei aos menores, os chefões do
tráfico passaram a recrutar meninos, e a
armá-los, já na faixa dos 10, 11 anos”.

Ou seja, mais um castigo para a criança
e o jovem realmente pobres, que já não
contam com a boa escola nem com a
presença da família e se veem violentados
pela imposição dos criminosos, que
sabem como obrigá-los ou convencê-los
à sua associação.

Vemos assim que, consciente ou inconscientemente,
pode estar por trás de
toda essa campanha em torno da reabilitação
da pobreza o desejo de acabar com
aquele sentimento de responsabilidade
que a sociedade tende a alimentar diante
dos criminosos vindos das classes menos
favorecidas, incutindo-nos a ideia de que,
se não é da pobreza que vêm os bandidos
pobres, então que sejam eles entregues
ao diabo... Quando a verdade é que as
leis deveriam ser mais duras em relação
aos criminosos do andar de cima. É lá
que os privilégios pululam e a impunidade
grassa. É de lá que, em cascata, certas
ações acabam por produzir mais pobreza,
desamparo, criminosos e violência.

Registre-se:

1) Não espanta o fato de o bandido de
que falávamos ter sido um bom aluno, uma
vez que nossos criminosos do colarinho
branco não só devem ter sido bons alunos
no primeiro grau, como também provavelmente
o foram na pós-graduação.

2) Descriminalizar a pobreza não é
admitir que existam pobres bonzinhos e
pobres mauzinhos, bem como ricos mauzinhos
e ricos bonzinhos. A criminalização
da pobreza fica evidente, principalmente,
não na ideia de que dela provêm os criminosos
– isso é preconceito –, mas no fato
de que pesa sobre criminosos pobres uma
lei que não pesa da mesma forma sobre os
bandidos mais favorecidos socialmente.

3) Seletividade punitiva é a regra segundo
a qual se escolhem aqueles que
serão punidos por determinados crimes. E,
enquanto em nossas cadeias prevalecerem
negros pobres, continuaremos vivendo na
prática sob a criminalização da pobreza.

Tendo a acreditar que um dia haveremos
de viver, de fato, em um Estado de
Direito, em que paire a mesma Justiça sobre
todos, sem exceção, e em todas as situações,
das mais cotidianas e banais às mais
sérias. Para chegarmos lá, é a inversão de
valores, sustentada no dinheiro e no poder,
que precisa ser revista – e não o ECA.

ABAIXO, O TEXTO ORIGINAL, ANTES DOS TOQUES FINAIS DO EDITOR DO BOLETIM:


A SELETIVIDADE PUNITIVA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Em recente série de reportagens, O Globo mostrou que os ex-colegas de um dos mais perigosos bandidos brasileiros, ao contrário dele, não enveredaram pelo mundo do crime.

A principal conclusão desse trabalho, em linhas gerais, parece haver sido a de que a pobreza não é fator determinante na formação de um criminoso. E devemos dizer que, à primeira vista, esse parece haver sido um louvável esforço no sentido de modificar-se o imaginário social, dentro do qual a pobreza, em si mesma tão sofrida, acaba sendo também preconceituosamente vista como a grande culpada por toda a violência que nos circunda. Principalmente por aqueles que não conseguem perceber criticamente o sistema que a origina.

Destacam ainda as matérias em questão a importância da boa escola e da presença interessada da família a garantirem proteção aos jovens contra as “armadilhas da criminalidade”, sendo tomado como exceção o bandido que, mesmo usufruindo de tais privilégios, foi por elas capturado.

Nesse momento, somos obrigados a nos perguntar se a verdade, ainda que não seja dita com todas as letras, seria que essa espécie de pobreza privilegiada, que ainda consegue proteger de alguma forma os seus, não deveria ser tomada num estudo à parte, uma vez que a outra, aquela completamente desprotegida diante de uma estrutura social perversa, não pode deixar de ser percebida como fator fragilizante, a pesar imensamente toda vez que um de seus jovens precisa tomar uma decisão sobre sua vida.
Pois a importância da proteção que lhes falta, e que é oferecida pelas famílias e pelas boas escolas às classes privilegiadas e a essa elite da pobreza muito bem homenageada pelo Globo, fica evidente, segundo a socióloga Maria Lúcia R. Maia, no grande número de rapazes que começam a trabalhar bem tarde e se mantêm em perfeita harmonia com a sociedade graças ao apoio moral e material da família.

Em síntese, a série de reportagens à qual nos referimos acaba nos levando a inferir que não seria apenas Fernandinho Beira-Mar a encarnar uma exceção em relação a seus colegas, ao virar bandido. A exceção mais curiosa constatada pelas reportagens nos parece ser exatamente a existência, desde a década de 70, de uma elite a se destacar em relação a uma pobreza completamente desamparada e sem qualquer condição de, por sua vez, amparar qualquer um dos seus, que ficam expostos, sim, a muitos riscos.

Importante frisar também que os criminosos vindos da riqueza e desfrutando de muitas mais oportunidades do que o criminoso Fernandinho Beira-Mar talvez devessem ser tomados como exceções tão desprezíveis quanto o bandido em questão. E não se diga em seu favor que bandidos do colarinho branco não matam, pois, apesar de, na maioria das vezes, não sujarem as próprias mãos de sangue, eles acabam se envolvendo em assassinatos de vários tipos, acabando biológica ou moralmente com várias vidas, inclusive sendo responsáveis por inúmeros genocídios.
Isso, quando não são responsáveis pela lavagem do dinheiro do tráfico de drogas - que, segundo o delegado Orlando Zaccone, representa bilhões de dólares por ano -, fazendo parte da mesma quadrilha do referido traficante.

Bem, dias depois do destaque dado às matérias aqui tratadas, no dia 14 de junho último, deparamos, no mesmo jornal, com um editorial a enfatizar a necessidade de uma reformulação do Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA ), que está para completar duas décadas. Seria pura coincidência?

São duas as preocupações, ou melhor, são dois os pleitos desse, que é um de nossos maiores veículos de informação: a eliminação do dispositivo segundo o qual o prontuário do menor infrator é zerado quando ele completa 18 anos e a redução do limite da inimputabilidade de 18 para 16 anos.
Justifica suas reivindicações, o impresso, inacreditavelmente, com o fato de que aproveitando-se “das imunidades conferidas pela lei aos menores, os chefões do tráfico passaram a recrutar meninos, e a armá-los, já na faixa dos 10, 11 anos”. Ou seja: a criança e o jovem realmente pobres, aqueles que, via de regra, não contam nem com a boa escola nem com a presença da família, além de se verem - desprotegidos que estão - violentados pela imposição dos criminosos, que sabem como obrigá-los ou convencê-los à sua associação, deveriam ser por isso, segundo o Globo, mais uma vez castigados.

Vemos assim que, consciente ou inconscientemente, pode estar por trás de toda essa campanha em torno da reabilitação da pobreza, o desejo de acabar-se com aquele certo sentimento de responsabilidade que a sociedade como um todo tende a alimentar diante dos criminosos vindos das classes menos favorecidas, incutindo-nos a ideia de que, se não é da pobreza que vêm os bandidos pobres, então que sejam eles entregues ao diabo...

Quando a verdade é que as leis deveriam ser mais duras em relação aos criminosos do andar de cima. É lá que os privilégios pululam e a impunidade grassa. É de lá que, em cascata, ao sabor da inversão de valores ali fomentada, certas ações acabam por produzir mais pobreza e desamparo, e mais criminosos e violência.

Registre-se:

1) O fato de o bandido de que falávamos haver sido um bom aluno, conforme frisa o Globo, não há que espantar, uma vez que nossos criminosos do colarinho branco não só devem haver sido bons alunos no primeiro grau, como também provavelmente o foram na pós-graduação.
2) Descriminalizar-se a pobreza não é admitir-se que existam pobres bonzinhos e pobres mauzinhos, bem como ricos mauzinhos e ricos bonzinhos. Pois a criminalização da pobreza se evidencia principalmente não no dizer-se que dela provêm os criminosos – isso é preconceito -, mas sim no se fazer pesar sobre os criminosos pobres uma lei que não pesa da mesma forma sobre os bandidos mais favorecidos socialmente.
3) Seletividade punitiva é a regra segundo a qual se escolhe aqueles que serão punidos por determinados crimes. E, enquanto em nossas cadeias prevalecerem negros pobres, continuaremos vivendo na prática sob a criminalização da pobreza.


Enfim, tendo a acreditar que um dia haveremos de viver de fato sob um estado de direito, em que sobre todos, sem exceção, e em todas as situações, das mais cotidianas e banais às mais sérias, paire a mesma Justiça.
Para chegarmos lá, os valores invertidos, que se resumem no valorizar-se o dinheiro e o poder em detrimento dos valores humanos interiores, e que infelizmente vimos abraçados por todos aqueles que não se importam com os meios utilizados para atingirem seus objetivos, sejam eles bandidos pobres ou bandidos ricos, precisam começar - eles sim e não o ECA – a ser revistos.

sábado, 3 de julho de 2010

A descriminalização pura e simples do uso de drogas

Organizei esse texto ( composição de alguns escritos anteriormente e já nesse blog, ao lado de outros inéditos ) semanas atrás, em função da sugestão de conhecido jornalista ( para análise e possível publicação em seu site ). Segue ele agora aqui, com novo título e os acertos que considerei necessários para uma sua efetiva publicação.

Entendo a defesa da descriminalização do uso de drogas como uma manifestação da consciência crescente de que este é um problema da esfera da Saúde Pública. E essa consciência é indispensável.Mas não consigo compreender que esse movimento não seja acompanhado de ampla discussão sobre a legalização e a regulamentação tanto da produção, quanto da venda e do uso dessas substâncias, cujo comércio ilegal tantos prejuízos tem trazido à sociedade; e cujo caráter criminoso dificulta o trabalho daqueles profissionais dedicados à prevenção de seu uso e ao tratamento dos dependentes químicos.

A sociedade é um todo de partes articuladas entre si. Não existe solução satisfatória para qualquer problema atual que não passe pela reestruturação desse todo. Assim, soluções para questões como drogas e violência só serão delineadas de fato quando dermos prioridade à revisão dos valores que temos abraçado e que perpassam a vida e as ações de cada um de nós. Uma espécie de psicanálise social talvez fosse do que precisássemos. Sem brincadeira.

Enquanto jovens das classes média e alta estiverem à deriva ( muitas vezes desconfiados daquilo que seus próprios pais defendem através de suas posturas diante da vida, incluindo-se aí até mesmo o uso de algum tipo de droga ), com um grande vazio nunca preenchido por todas as coisas que o dinheiro possa comprar, sempre haverá mercado para quaisquer drogas, legais ou ilegais...
Enquanto a miséria jogar outra parcela de nossos jovens no vício e nas mãos dos empresários do crime, a violência só aumentará.

Por enquanto, insisto que precisamos ampliar a discussão sobre o assunto. E gostaria de destacar as três principais razões que identifico para que pais, mães, médicos, educadores, intelectuais, psicólogos, jornalistas, políticos, juristas e seres humanos de modo geral discutam o retumbante fracasso da política repressiva segundo a qual o assunto vem sendo tratado, e que a simples adoção da descriminalização do uso de drogas, a médio e longo prazos, talvez possa exacerbar.

A primeira dessas razões é que não podemos deixar de pensar na possibilidade de que essa simples descriminalização possa vir a se tornar medida de caráter elitista, uma vez que, de certa forma, seus maiores beneficiados podem acabar sendo os dependentes das classes mais abastadas.

Em "Acionistas do Nada" – ao qual faço menção no romance “A Juíza”, o delegado Orlando Zaccone nos fala daqueles que seriam os escolhidos "para pagar o pato" no que se refira ao assunto drogas.
Membro da "Law Enforcement Against Prohibition", organização internacional dedicada à defesa da legalização das drogas -, em recente entrevista ao jornal “O Globo” ( Revista de Domingo ), ele diz que a proibição é mantida “para se incrementar a guerra contra o inimigo do Estado.” E ele explica: “O Estado sempre precisou de inimigos: bruxas, hereges, comunistas. Hoje, são pobres armados. É só uma questão política”.
Segundo o delegado, na mesma entrevista, a última ponta do negócio das drogas é o varejo e é nela que a repressão atua: “Uma pesquisa da UFRJ mostra que a maioria dos presos do Rio são traficantes pegos sozinhos, com pequenas quantidades. Ou seja, aviões. Essa política que rotula os pequenos participantes do negócio é o que nos faz questionar o interesse da repressão. O comércio de drogas gira mais de 500 bilhões de dólares/ano. A repressão não quer atingir a base econômica, que interessa ao sistema. O dinheiro das drogas circula, sai do mercado ilegal para o legal. Quantas investigações há no Brasil sobre lavagem de dinheiro de drogas? Nenhuma”.

Inconsistência: temos ouvido que quantidades pequenas, apreendidas com portadores das classes média e alta, podem ser consideradas para uso pessoal, desqualificando o tráfico. O que pode ser bastante preocupante, se acreditarmos nas previsões do sociólogo Fabiano Monteiro - pesquisador do Viva Rio, em reportagem do Globo ( 09/5/10 ) intitulada “Pacificação e venda de drogas lado a lado” -, que prevê, diante do “fim hipotético das guerras por territórios do tráfico”, “o crescimento de venda e de compra de drogas na classe média”.

A segunda razão para que discutamos a possibilidade da legalização das drogas é ser de difícil compreensão o fato de uma sociedade poder conviver passivamente com a ideia de que seus jovens - diante da descriminalização do uso de quaisquer substâncias ilegais - mantenham relações comerciais com a criminalidade.
Isso não cheiraria a hipocrisia? Isso não falaria a favor da possível existência de espécie de acordo de cavalheiros entre a sociedade e a marginalidade?

O fato é que, durante a leitura do Globo, no mesmo dia, encontrei matéria intitulada “Tráfico adota nova tática para conviver com UPPs”, que me causou profundo sentimento de estranheza.
Longe de mim a ideia de fazer qualquer crítica às autoridades abaixo, citadas na reportagem em questão: além de respeitá-las, imagino que seu trabalho não seja nada fácil. O que possa parecer aqui crítica que seja lido como perplexidade. Perplexidade essa que, faço questão de frisar, pode haver sido provocada por uma defeituosa leitura minha do texto, ou, por outro lado, por uma sua defeituosa elaboração ( do texto ), ambas as coisas favorecendo possíveis interpretações equivocadas. Assim, recomendo a leitura do citado jornal a todos que leiam o presente artigo.

Como a matéria em questão nos leva a entender, o governo passa espécie de recado às facções: “o tráfico do Rio terá que abandonar o armamento de guerra e deixar de lado o domínio de território em troca de sua própria sobrevivência: a venda de drogas”.
Foi isso mesmo que eu li - “em troca”? Mas essa não seria uma terminologia utilizada em acordos explícitos ou implícitos!!!?

E mais adiante, em três diferentes momentos da reportagem, que reproduz, indireta ou diretamente, palavras do secretário de segurança do Rio José Mariano Beltrame:

1- “...sozinhas, as UPPs não têm a pretensão de acabar com a venda de drogas, e sim o objetivo de devolver a liberdade às comunidades dominadas pelos traficantes.”

Sobre os possíveis próximos passos dos traficantes, em vista das UPPs:
2- “Pode ser que agora, em áreas mais fortes e significativas, eles tentem aí uma outra saída, como retornar a estratégias dos anos 80 ( quando a droga era vendida de forma discreta, através de “esticas” ou “aviões”, e os traficantes se protegiam com armas leves ).”

E, quase uma contradição com afirmação anterior:
3- “Independente da reorganização que o tráfico tente fazer, a sociedade tem o poder de polícia. Temos o poder da força e, se tivermos que usá-la para seguir com o programa ( das UPPs ), vamos usar. A segurança é planejada, existe peça de reposição, treinamento, escala de plantão, alimentação. Agora, essas pessoas ( bandidos ) que ficam lá, armadas, eu não sei em que escala vão trabalhar.”

Parecendo fazer coro a tais declarações, na mesma página, encontramos palavras segundo o jornal do chefe de Polícia Civil Allan Turnoviski: “O tráfico vai ter que aprender que não poderá mais continuar armado”.

Resumindo, a matéria em pauta parece querer nos levar a crer que se tem a “força” mas não se tem a “pretensão” para acabar com a venda ilegal de drogas... E sobram pontos de interrogação... Pergunta 1: se podem desarmar o tráfico, por que não podem acabar com ele? Pergunta 2: o objetivo a ser atingido não ficaria parecendo ser a hipócrita aceitação da venda ilícita, desde que problemas identificados como críticos pelos defensores da legalização das drogas, como a violência da guerra do tráfico e a utilização pelos traficantes de armamento pesado, pudessem ser “amenizados”?

E é aí que nos deparamos com a terceira razão, talvez a mais séria para a necessidade dessa discussão em torno da legalização regulamentada das drogas, que seria a grande probabilidade de, a médio prazo - em face da adoção da descriminalização pura e simples do uso de drogas -podermos vir a verificar um aumento significativo da dependência química ( o uso desmedido do álcool aí incluído ), além dos episódios de violência, desumanidade e falta de limites envolvendo jovens das classes mais altas.
Simplesmente porque tal situação, ao, de certa forma, permitir aos jovens o trânsito livre pela ilegalidade – ilegalidade essa que continua a existir mesmo com menos armas nos morros e guerra arrefecida -, colocar-se-ia contra qualquer princípio educativo. E essa hipócrita contradição poderia favorecer, a médio prazo, a estruturação, em nossos jovens, de personalidades nada sadias, na medida em que as divisas entre o legal e o ilegal, entre o que não deva ser punido e o que deva ser punido não ficariam muito claras. Inclusive isso podendo favorecer o fortalecimento do sentimento fascista – infelizmente já presente em alguns grupos de jovens - da superioridade em relação aos mais humildes – aqueles que, em nossa sociedade, continuariam a ser selecionados pela justiça para pagar por seus crimes.

Obs. Outro texto que merece ser lido e relido, em busca de sua melhor interpretação: no site “Globo – Opinião”, o artigo de Alex Ramos de Faria, intitulado “O Tráfico e as UPPs”, no qual o pesquisador afirma que os traficantes não andavam armados pesadamente para se defenderem da polícia, mas para se defenderem das facções rivais. Sendo que, em vista das UPPs, que acabaram ( ironicamente ) fazendo para eles o papel da segurança, eles puderam abrir mão de suas próprias armas e estão podendo “trabalhar” em paz.

Bem, assim sendo, talvez pudéssemos resumir os três principais motivos aqui apresentados para que questionemos a descriminalização das drogas sem uma discussão paralela em torno de uma sua legalização regulamentada, caracterizando a medida parcial através de três palavras: elitista, hipócrita e deseducativa.

Pensemos mais um pouco: além dos que defendem a manutenção do caráter criminoso das drogas por verdadeiro convencimento e daqueles que o fazem por conta de qualquer interesse escuso, há os que o fazem por conta do grande equívoco que é acreditar que os que defendem sua legalização estejam automaticamente defendendo as drogas em si mesmas.

A bandeira em defesa da legalização das drogas é na verdade em favor da Lei e do Estado de direito propriamente dito; da dignidade humana e da abordagem da questão das drogas pela perspectiva da saúde pública.
Se um "Estado de direito" prevê que todos se submetam às mesmas leis e regras, e se percebemos a diferença do tratamento dado a drogas como o álcool, o tabaco e as anfetaminas, talvez devêssemos refletir sobre a hipocrisia de tal situação em face também dessa perspectiva.

Aos inúmeros argumentos que podem ser elencados a favor da legalização das drogas, deveríamos acrescentar ainda - lado a lado com a questão do prejuízo que a hipocrisia, se oficializada, poderia trazer para a juventude - a possibilidade de vermos os recursos dispendidos na repressão, retumbante fracasso, direcionados, além de para o tratamento digno dos já comprometidos pelo vício, a campanhas de prevenção; à formação de professores; à criação de possibilidades de emprego-estágio ( que preparariam os jovens para atuarem em diversas áreas, de acordo com suas aptidões, ali também avaliadas ) para os jovens carentes - incluindo-se aqueles em recuperação; à educação geral mesmo, que, sem dúvida, acabaria por resultar em maiores chances de vermos nossos jovens crescerem cada vez mais longe de qualquer droga.

Hélcio Fernandes Mattos - psiquiatra, psicanalista, professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador do CRIAA-UFF ( CAPS-ad/ Centro Regional Integrado de Atendimento ao Adolescente ) - faz questão de frisar: “o projeto de legalização das drogas, da mesma forma como ocorre hoje em relação à guerra contra as drogas, teria de ser aprovado pela ONU, e dele todos os países teriam de participar”.

Para ele, em artigo intitulado “A REDE DE APOIO SOCIAL NAS INTERVENÇÕES COM USÁRIOS DE DROGAS”, material didático do curso de especialização da UFF _ “Prevenção às Drogas e Escola – 2008”:

”... mais do que liberar verbas para as ações não repressivas, a legalização permitiria que as relações entre os responsáveis pela direção político-administrativa e os usuários deixassem de ser centradas na perspectiva punitiva. Sem falar que a ambiguidade em relação ao tipo de intervenção e o tempo necessário para se avaliar os resultados seriam reduzidos. Embora a decisão da legalização se fundamente e cresça mais a partir do fracasso contínuo da política repressiva do que da certeza dos resultados específicos que poderiam ser obtidos, haveria uma fundamental mudança no cenário no qual até hoje se encontram os usuários e os responsáveis pelas diferentes intervenções.”

E: “... na medida em que a legalização produziria uma inflexão nos objetivos da intervenção e nos meios utilizados para atingi-los, a condução das ações deixaria de ser centrada na punição, criando-se a possibilidade de se conseguir que o sofrimento da família ou do usuário ocupasse o lugar de destaque antes reservado à proibição.”

A verdade é que imaginar como se organizaria a sociedade em função da legalização das drogas é algo bastante difícil. Será naturalmente árdua a tarefa de regulamentar cada passo da produção, venda e uso de cada droga. Mas poderíamos desde já idealizar alguns procedimentos a terem lugar então: isso faz parte do caráter mesmo desse amplo debate que proponho.

Sigamos pensando: da mesma forma que o bom senso não pode aceitar que, no caso, por exemplo, da legalização do jogo no país, possam vir a ter o direito de administrá-lo aqueles que vêm mantendo seu funcionamento na ilegalidade ( seria declaração pública de que o crime compensa ), também não posso imaginar a possibilidade de que, após a legalização das drogas, qualquer um dos envolvidos em seu tráfico, produção e/ou comércio ilegais venha a desfrutar de qualquer privilégio na nova fase.

Assim é que, como ocorre na venda dos remédios de tarja negra, a venda de drogas, a partir de sua legalização, poderia passar a ser subordinada ao Ministério da Saúde, exigindo um documento assinado pelo comprador. Poderia haver algum controle de seus usuários, do quanto se drogam, de seu comportamento, daquilo que fazem sob o efeito da droga ( e a descrição de medidas disciplinadoras )... E seu médico ou CAPS ad, ao qual teria de se apresentar regularmente para tratamento e acompanhamento, seria informado de suas solicitações de substâncias.
Como o álcool, qualquer droga teria de ser proibida a menores, claro.

Segundo o coordenador do CRIAA-UFF, no artigo já citado, “na concepção de The ecomomist, a proposta [legalização] é considerada não como a solução, mas sim como um mal menor, já que ‘a proibição parece ser ainda mais prejudicial, especialmente para os mais pobres e fracos do mundo. A legalização não vai acabar com os problemas da criminalidade decorrrente do uso das drogas, mas, como com o álcool e o cigarro, haverá impostos e regras para conter as distorções’. Ou seja, a legalização permitiria que fossem criadas formas de controle e que se pudesse conhecer mais e melhor sobre o consumo de drogas”.

Sem falar que, de acordo com Mattos ainda, “uma nova prática de intervenção, aprovada oficialmente, influenciaria na construção de um novo imaginário social, consolidando-o, pouco a pouco, nas relações com os usuários e entre os profissionais. Da mesma forma que hoje a prática repressiva se manifesta em diferentes setores da sociedade, sem que seja percebida, de forma clara, as suas origens”.

Enfim, acredito haver conseguido demonstrar aqui a necessidade de ampla discussão sobre o assunto “legalização das drogas”. Que certamente será infinitamente mais produtiva se cada um desde já se empenhar em um corajoso mergulho dentro de si mesmo, na tentativa de perceber o reflexo do capitalismo selvagem no desejo humano, resultando talvez, por um lado, no número cada vez maior de adictos e, por outro lado, na construção de um processo histórico baseado no casuísmo.

Há sempre um desejo, um interesse a ser atendido... Enquanto a verdadeira construção de um mundo melhor para todos – no qual certamente vislumbramos uma cada vez menor demanda por qualquer tipo de droga - é sempre empurrada para um amanhã que nunca chegará, se não não nos conscientizarmos de que o amanhã sempre começa hoje.