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segunda-feira, 5 de julho de 2010

Seletividade Punitiva e o Estatuto da Criança e do Adolescente

Com um ou outro trecho alterado pelo editor - assim, como segue -, este artigo acaba de ser publicado pelo Boletim da UFMG.
Não deixe de ir até lá para conferir esse e outros textos muitíssimo interessantes.

Em recente série de reportagens, o
jornal O Globo mostrou que os ex-
-colegas de um dos mais perigosos
bandidos brasileiros, ao contrário dele,
não enveredaram pelo mundo do crime.

A principal conclusão desse trabalho, em
linhas gerais, parece ser a de que a pobreza
não é fator determinante na formação
de um criminoso. E devemos dizer que,
à primeira vista, esse parece ter sido um
louvável esforço no sentido de modificar o
imaginário social, dentro do qual a pobreza,
em si mesma tão sofrida, acaba sendo
também preconceituosamente vista como
a grande culpada por toda a violência que
nos circunda.

Destacam ainda as matérias em
questão a importância da boa escola e a
presença interessada da família em garantir
proteção aos jovens contra as “armadilhas
da criminalidade”, sendo tomado como
exceção o bandido que, mesmo usufruindo
de tais privilégios, foi por elas capturado.

Nesse momento, somos obrigados
a nos perguntar se a verdade, ainda que
não seja dita com todas as letras, seria
que essa espécie de pobreza privilegiada,
que ainda consegue proteger de alguma
forma os seus, não deveria ser tomada em
um estudo à parte, uma vez que a outra,
completamente desprotegida diante de
uma estrutura social perversa, não pode
deixar de ser percebida como fator fragilizante,
a pesar imensamente toda vez
que um de seus jovens precisa tomar uma
decisão sobre sua vida.

Pois a importância da proteção que lhes
falta, e que é oferecida pelas famílias e pelas
boas escolas às classes privilegiadas e a essa
elite da pobreza, fica evidente, segundo a
socióloga Maria Lúcia R. Maia, no grande
número de rapazes que começam a trabalhar
bem tarde e se mantêm em perfeita
harmonia com a sociedade graças ao apoio
moral e material da família.

Em síntese, a série de reportagens
acaba nos levando a inferir que não seria
apenas Fernandinho Beira-Mar a encarnar
uma exceção em relação a seus colegas,
ao virar bandido. A exceção mais curiosa
constatada pelas reportagens nos parece
ser exatamente a existência de uma elite
a se destacar em relação a uma pobreza
completamente desamparada e sem qualquer
condição de, por sua vez, amparar
qualquer um dos seus, que ficam expostos
a muitos riscos.

Importante frisar também que os
criminosos vindos da riqueza e que desfrutam
de muito mais oportunidades do que
o criminoso Fernandinho Beira-Mar talvez
devessem ser tomados como exceções
tão desprezíveis quanto o bandido em
questão. E não se diga em seu favor que
bandidos do colarinho branco não matam,
pois, apesar de, na maioria das vezes, não
sujarem as próprias mãos de sangue, eles
acabam se envolvendo em assassinatos
de vários tipos, acabando biológica ou
moralmente com várias vidas.

Dias depois do destaque dado às
matérias aqui tratadas, no dia 14 de
junho último, deparamos, no mesmo
jornal, com um editorial a enfatizar a
necessidade de reformulação do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), que
está para completar duas décadas. Seria
pura coincidência?

São duas as preocupações, ou melhor,
pleitos desse veículo: a eliminação do dispositivo
segundo o qual o prontuário do
menor infrator é zerado quando completa
18 anos e a redução do limite da inimputabilidade
de 18 para 16 anos.

Justifica suas reivindicações, o jornal,
inacreditavelmente, com o fato de que
aproveitando-se “das imunidades conferidas
pela lei aos menores, os chefões do
tráfico passaram a recrutar meninos, e a
armá-los, já na faixa dos 10, 11 anos”.

Ou seja, mais um castigo para a criança
e o jovem realmente pobres, que já não
contam com a boa escola nem com a
presença da família e se veem violentados
pela imposição dos criminosos, que
sabem como obrigá-los ou convencê-los
à sua associação.

Vemos assim que, consciente ou inconscientemente,
pode estar por trás de
toda essa campanha em torno da reabilitação
da pobreza o desejo de acabar com
aquele sentimento de responsabilidade
que a sociedade tende a alimentar diante
dos criminosos vindos das classes menos
favorecidas, incutindo-nos a ideia de que,
se não é da pobreza que vêm os bandidos
pobres, então que sejam eles entregues
ao diabo... Quando a verdade é que as
leis deveriam ser mais duras em relação
aos criminosos do andar de cima. É lá
que os privilégios pululam e a impunidade
grassa. É de lá que, em cascata, certas
ações acabam por produzir mais pobreza,
desamparo, criminosos e violência.

Registre-se:

1) Não espanta o fato de o bandido de
que falávamos ter sido um bom aluno, uma
vez que nossos criminosos do colarinho
branco não só devem ter sido bons alunos
no primeiro grau, como também provavelmente
o foram na pós-graduação.

2) Descriminalizar a pobreza não é
admitir que existam pobres bonzinhos e
pobres mauzinhos, bem como ricos mauzinhos
e ricos bonzinhos. A criminalização
da pobreza fica evidente, principalmente,
não na ideia de que dela provêm os criminosos
– isso é preconceito –, mas no fato
de que pesa sobre criminosos pobres uma
lei que não pesa da mesma forma sobre os
bandidos mais favorecidos socialmente.

3) Seletividade punitiva é a regra segundo
a qual se escolhem aqueles que
serão punidos por determinados crimes. E,
enquanto em nossas cadeias prevalecerem
negros pobres, continuaremos vivendo na
prática sob a criminalização da pobreza.

Tendo a acreditar que um dia haveremos
de viver, de fato, em um Estado de
Direito, em que paire a mesma Justiça sobre
todos, sem exceção, e em todas as situações,
das mais cotidianas e banais às mais
sérias. Para chegarmos lá, é a inversão de
valores, sustentada no dinheiro e no poder,
que precisa ser revista – e não o ECA.

ABAIXO, O TEXTO ORIGINAL, ANTES DOS TOQUES FINAIS DO EDITOR DO BOLETIM:


A SELETIVIDADE PUNITIVA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Em recente série de reportagens, O Globo mostrou que os ex-colegas de um dos mais perigosos bandidos brasileiros, ao contrário dele, não enveredaram pelo mundo do crime.

A principal conclusão desse trabalho, em linhas gerais, parece haver sido a de que a pobreza não é fator determinante na formação de um criminoso. E devemos dizer que, à primeira vista, esse parece haver sido um louvável esforço no sentido de modificar-se o imaginário social, dentro do qual a pobreza, em si mesma tão sofrida, acaba sendo também preconceituosamente vista como a grande culpada por toda a violência que nos circunda. Principalmente por aqueles que não conseguem perceber criticamente o sistema que a origina.

Destacam ainda as matérias em questão a importância da boa escola e da presença interessada da família a garantirem proteção aos jovens contra as “armadilhas da criminalidade”, sendo tomado como exceção o bandido que, mesmo usufruindo de tais privilégios, foi por elas capturado.

Nesse momento, somos obrigados a nos perguntar se a verdade, ainda que não seja dita com todas as letras, seria que essa espécie de pobreza privilegiada, que ainda consegue proteger de alguma forma os seus, não deveria ser tomada num estudo à parte, uma vez que a outra, aquela completamente desprotegida diante de uma estrutura social perversa, não pode deixar de ser percebida como fator fragilizante, a pesar imensamente toda vez que um de seus jovens precisa tomar uma decisão sobre sua vida.
Pois a importância da proteção que lhes falta, e que é oferecida pelas famílias e pelas boas escolas às classes privilegiadas e a essa elite da pobreza muito bem homenageada pelo Globo, fica evidente, segundo a socióloga Maria Lúcia R. Maia, no grande número de rapazes que começam a trabalhar bem tarde e se mantêm em perfeita harmonia com a sociedade graças ao apoio moral e material da família.

Em síntese, a série de reportagens à qual nos referimos acaba nos levando a inferir que não seria apenas Fernandinho Beira-Mar a encarnar uma exceção em relação a seus colegas, ao virar bandido. A exceção mais curiosa constatada pelas reportagens nos parece ser exatamente a existência, desde a década de 70, de uma elite a se destacar em relação a uma pobreza completamente desamparada e sem qualquer condição de, por sua vez, amparar qualquer um dos seus, que ficam expostos, sim, a muitos riscos.

Importante frisar também que os criminosos vindos da riqueza e desfrutando de muitas mais oportunidades do que o criminoso Fernandinho Beira-Mar talvez devessem ser tomados como exceções tão desprezíveis quanto o bandido em questão. E não se diga em seu favor que bandidos do colarinho branco não matam, pois, apesar de, na maioria das vezes, não sujarem as próprias mãos de sangue, eles acabam se envolvendo em assassinatos de vários tipos, acabando biológica ou moralmente com várias vidas, inclusive sendo responsáveis por inúmeros genocídios.
Isso, quando não são responsáveis pela lavagem do dinheiro do tráfico de drogas - que, segundo o delegado Orlando Zaccone, representa bilhões de dólares por ano -, fazendo parte da mesma quadrilha do referido traficante.

Bem, dias depois do destaque dado às matérias aqui tratadas, no dia 14 de junho último, deparamos, no mesmo jornal, com um editorial a enfatizar a necessidade de uma reformulação do Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA ), que está para completar duas décadas. Seria pura coincidência?

São duas as preocupações, ou melhor, são dois os pleitos desse, que é um de nossos maiores veículos de informação: a eliminação do dispositivo segundo o qual o prontuário do menor infrator é zerado quando ele completa 18 anos e a redução do limite da inimputabilidade de 18 para 16 anos.
Justifica suas reivindicações, o impresso, inacreditavelmente, com o fato de que aproveitando-se “das imunidades conferidas pela lei aos menores, os chefões do tráfico passaram a recrutar meninos, e a armá-los, já na faixa dos 10, 11 anos”. Ou seja: a criança e o jovem realmente pobres, aqueles que, via de regra, não contam nem com a boa escola nem com a presença da família, além de se verem - desprotegidos que estão - violentados pela imposição dos criminosos, que sabem como obrigá-los ou convencê-los à sua associação, deveriam ser por isso, segundo o Globo, mais uma vez castigados.

Vemos assim que, consciente ou inconscientemente, pode estar por trás de toda essa campanha em torno da reabilitação da pobreza, o desejo de acabar-se com aquele certo sentimento de responsabilidade que a sociedade como um todo tende a alimentar diante dos criminosos vindos das classes menos favorecidas, incutindo-nos a ideia de que, se não é da pobreza que vêm os bandidos pobres, então que sejam eles entregues ao diabo...

Quando a verdade é que as leis deveriam ser mais duras em relação aos criminosos do andar de cima. É lá que os privilégios pululam e a impunidade grassa. É de lá que, em cascata, ao sabor da inversão de valores ali fomentada, certas ações acabam por produzir mais pobreza e desamparo, e mais criminosos e violência.

Registre-se:

1) O fato de o bandido de que falávamos haver sido um bom aluno, conforme frisa o Globo, não há que espantar, uma vez que nossos criminosos do colarinho branco não só devem haver sido bons alunos no primeiro grau, como também provavelmente o foram na pós-graduação.
2) Descriminalizar-se a pobreza não é admitir-se que existam pobres bonzinhos e pobres mauzinhos, bem como ricos mauzinhos e ricos bonzinhos. Pois a criminalização da pobreza se evidencia principalmente não no dizer-se que dela provêm os criminosos – isso é preconceito -, mas sim no se fazer pesar sobre os criminosos pobres uma lei que não pesa da mesma forma sobre os bandidos mais favorecidos socialmente.
3) Seletividade punitiva é a regra segundo a qual se escolhe aqueles que serão punidos por determinados crimes. E, enquanto em nossas cadeias prevalecerem negros pobres, continuaremos vivendo na prática sob a criminalização da pobreza.


Enfim, tendo a acreditar que um dia haveremos de viver de fato sob um estado de direito, em que sobre todos, sem exceção, e em todas as situações, das mais cotidianas e banais às mais sérias, paire a mesma Justiça.
Para chegarmos lá, os valores invertidos, que se resumem no valorizar-se o dinheiro e o poder em detrimento dos valores humanos interiores, e que infelizmente vimos abraçados por todos aqueles que não se importam com os meios utilizados para atingirem seus objetivos, sejam eles bandidos pobres ou bandidos ricos, precisam começar - eles sim e não o ECA – a ser revistos.