Por que entendemos como amor o
gesto do velho que mata a companheira debilitada e a caminho do desenlace natural,
entregando-se depois à própria míngua?
Provavelmente porque tudo o que
vemos interpretamos com olhos neoliberais viciados pela propaganda da beleza,
da juventude eterna, da produtividade capitalista, da ilusão da vitória sobre a
morte... E, dessa perspectiva, pode parecer heróico abreviar-se o período em
que a consciência da morte se agudiza. Porque, por incrível que possa parecer,
a morte, magicamente, livra a todos da própria morte.
Exatamente como ficamos sabendo
ao ler “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói. Ao fim de sua longa agonia, Ilitch
diz para si mesmo:
“A morte está acabada. Não existe
mais”
De qualquer forma, “Amor” é um filme
bonito.
Importante testemunhar a
realidade daquilo que somos: simples pontes para os que vêm depois: os
descendentes...; os alunos, que todos temos, sejamos professores, ou não... A
melhor lição dada, pelo casal de músicos, ao jovem ex-aluno, com certeza foi
deixá-lo entrar em sua casa, e testemunhar de perto o quanto iam ali, pouco a
pouco, se confundindo com o livro na prateleira, o piano mudo, o quadro
empoeirado...
A verdade é que somos mesmo como as
formiguinhas que, afogadas em uma poça d’agua, acabam por servir de caminho mais
seguro para as que vêm atrás...
Pontes.
Como dizia Teilhard de Chardin, a
humanidade nada mais é do que uma imensa “esteira de existências esmagadas”...
E “Amor” nos leva a pensar...
Por que fazemos tanta questão de fugir
da verdade?
Por que confundimos com perda de
dignidade a velhice e o próprio sofrimento das doenças limitantes que a acompanham?
Será por conta desta mesma
confusão que nossa sociedade ainda exclui todos os portadores de qualquer tipo
de deficiência?
Não parece ser outra a confusão
que, no filme em tela, logo se lança sobre o espectador... Afinal, o título
“Amor” nos induz a compreender como romântico o gesto do marido que, não sendo
capaz de aceitar seus próprios limites(o pedido de socorro lhe vem inclusive em
forma de pesadelo), e não admitindo que a esposa (Anne) fosse cuidada por
profissionais, da maneira adequada, acaba por antecipar o fim de sua história.
Infelizmente, não são poucos
(vide a filha de Anne e uma das enfermeiras a princípio contratadas pelo velho)
os incapazes de “cuidar” nessa nossa sociedade “big brother” que vive do
individualismo, da exclusão, do lucro, da ambição, da competição, do descarte,
da ilusão; e na qual cada um parece viver no incrível autoengano de que seu dia
D possa ser infinitamente adiado...
Dessa forma, não é difícil
compreender que o medo de vir a não dar conta dos cuidados com a companheira,
e, depois, de vir a cair na mesma situação de dependência "
assustadora" em que a mulher mergulhara possa haver movido o músico
em suas últimas decisões. Quem sabe se refletisse um pouco mais, ou se
estivesse mais descansado, as coisas se encaminhassem de outra maneira...
Pois a verdade é que morreremos
todos.
A verdade é que o avançar do
tempo sempre nos premiará com algum tipo de deficiência, de limitação.
E nossa decadência deve servir,
sim (e esse serviço prestado por cada velho decrépito não tem salário que pague,
além de, ao contrário do que propagandeiam, dignificar o fim de qualquer
história), enquanto dure, para que nossos próximos – filhos, netos, amigos,
cônjuges, vizinhos, cuidadores - possam mirar seu próprio fim. Boa oportunidade
para amadurecerem e se tornarem criaturas mais humildes e humanas; mais capazes
de se identificarem com cada próximo; oferecendo, enfim, seu melhor à Vida que
transcende a sua própria vida.
Marcante, no filme:
Perto da morte, o velho abraça,
dentro de uma colcha, a pulsante vida do pombo capturado em sua visita ao
apartamento...
A morte do velho nos é revelada
em espécie de sonho/delírio seu; quando ele pega o casaco e sai de casa,
atrás da mulher ( já morta então)...
“Livre” da morte, a filha de Anne
chega sozinha ao apartamento vazio. Sentada na cadeira de seus pais, ela olha
em volta, e talvez intua que a “fila andou”. A próxima a murchar ali deverá ser
ela.