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sábado, 2 de novembro de 2013

TRECHOS DE "VAIDADE É LOUCURA (NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS)"

A favor de a polêmica em torno das Biografias ser resolvida pela simples inclusão em cada uma delas de informação sobre seu gênero literário híbrido (veja texto anterior), seguem alguns trechos do livro ao qual Wilson Martins faz referência em seu respeitado "A Crítica Literária no Brasil (2002).

(Apesar de simples, sabemos que tal sugestão pode não ser sequer cogitada, em vista da necessidade de, para sua aceitação, precisar contar, de um lado, com o fim do sensacionalismo que geralmente envolve toda biografia que se anuncie como verdade pronta e acabada, e, de outro lado, com a humilde compreensão, por parte dos biografados, de que, graças a Deus, sempre serão múltiplos os olhares sobre qualquer um.

A verdade é que um mesmo fato sempre poderá ser contextualizado e interpretado de maneira diferente por cada um daqueles que se disponham a examiná-lo. Inclusive, pela mesma pessoa em momentos diversos. Vejamos, portanto, o que Machado de Assis tem a nos dizer sobre a relativa importância de todas as coisas, observando ainda como são várias as opiniões em torno do próprio mestre.) 


“Eu gosto de catar o mínimo e o escondido, dizia Machado. Mínimo e escondido esses que, a nosso ver, são a própria natureza humana ou a vaidade – recorte dela; vaidade que se esconde de tanto se mostrar; vaidade que é de todos e que, camuflada nos acontecimentos/acasos diários, talvez constitua a mola propulsora de tudo (ou quase...). De qualquer forma, revelar isso, com clareza, humor e ironia parece-nos que foi o que fez Machado, desnudando uma nova dimensão de todas as coisas. Sua preferência pelas coisas miúdas apenas relativiza as normalmente consideradas importantes. Relativiza-as, justamente porque mostra que são tão importantes quanto as que o foram antes assim consideradas e as que depois o serão, e que, por mudarem tanto, permanecem sempre iguais. Já as coisas miúdas, essas são eternamente as mesmas e, talvez por isso, acabem por tornar-se imperceptíveis aos olhos comuns, parecendo, assim, muito novas a cada vez que se tornam visíveis a um mortal, através de um insight, durante a leitura de um livro, em um processo psicanalítico ou, quem sabe?, através de uma boa topada numa pedra do caminho...


 “No entanto, para alguns, como Tristão de Ataíde, a primeira impressão que se colhe do humorismo machadiano corresponde à maneira leve de tratar as coisas graves, e a maneira grave de tratar as coisas leves [...]:

 
“’Dir-se-ia que o autor não leva a sério os acontecimentos que têm dimensões nacionais ou universais, e que não faz outra coisa, em suas páginas da semana, senão brincar, ou molhar a pena da galhofa na tinta da melancolia. Tudo é riso, discreto e talvez amargo riso, nessas páginas em que o autor entra em contacto com os episódios para provar que não se prende demais a eles.’ – reporta-nos Gustavo Corção ao pensamento de Tristão, para logo em seguida rebatê-lo, conduzindo-nos novamente ao Machado que conhecemos:

 
“’Tenho para mim que esse juízo seria grosseiro ainda que não conhecêssemos nada do homem, porque na própria obra, naquela mesmo que parece ostentar descuido e falta de sisudez, há a finura e a beleza, há o cuidado extremo da forma, há o zelo excelente da expressão para nos dar a pista da alma escondida do autor. E na própria obra está a prova de seu minucioso interesse por tudo o que relatam os jornais da semana e por tudo o que vai acontecendo nos momentos do mundo. Está ali, travestida, a prova do interesse, a prova do engagement machadiano; mas logo, paradoxalmente, o autor nos dá também a prova, não de um desinteresse, mas de um desapego. Os fatos são sérios, mas não podem ser levados a sério com aquele estilo solene e grave que falta, felizmente, ao escriba das cousas miúdas. A atualidade merece atenção curiosa, mas não merece todo o empenho da alma míope que vê coisas maiores nas coisas menores. E é por isso, justamente por isso, que envelhecem depressa as crônicas que se submetem aos prestígios da atualidade. [...] Toda obra de arte, na medida que traduz uma experiência profunda, traz recado de eternidade ou transcendência do homem sobre o mundo. Ao contrário, será pobre e mirrada a obra que se submete ao calendário, às tendências e vogas, pretendendo servir à mobilidade em vez de servir-se dela para anunciar a existência de alguma imobilidade.”’ (p. 46)

 
“E é o tratar do lado histórico como face efêmera (pano de fundo mutante para o espetáculo eterno das batalhas humanas) que, como Corção, tão bem conseguimos observar na obra de Machado de Assis. Algo transcende da História, e esse algo é o homem e o perpétuo choque entre suas indagações e o silêncio do mundo, como diria Camus.” (p. 48)

 
“Mas prestemos atenção em como o escritor trata a História, desta vez através do personagem Brás Cubas:

 
“’A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa. Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéia fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história eterna loureira.. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório, - ou ‘um abóbora’ como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois Césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o ‘abóbora’ de Sêneca. E tu, madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sábio. Viva pois a história, a volúvel história que dá para tudo; e tornando à idéia fixa, direi que é ela a que faz os varões fortes e os doudos; a idéia móbil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, - fórmula Suetônio.”’ (p. 50)

 
“Interpretações de interpretações de interpretações: eis a História, parece-nos dizer Machado, através de Brás Cubas... E esbarramos no velho axioma jornalístico de que não existem fatos, só versões, pois a verdade é mesmo inapreensível, até mesmo pela arte. Afinal, como sugeriu Nabokov, o conhecido autor de Lolita,em entrevista à BBC Television, em 1962, ‘podemos chegar cada vez mais perto, por assim dizer, da realidade; mas nunca o suficiente, porque ela é uma sucessão de passos, níveis de percepção, fundos falsos, e, por conseguinte, inesgotável, inatingível.

 
“Sim, fazemos História, No entanto, somos absolutamente incapazes de fielmente reproduzir sequer um dia de nossas próprias vidas. Talvez daí a propositada deturpação das citações ser outra característica do lúcido Machado de Assis mencionada por Magalhães Júnior à página 64, do volume 1, da obra completa de Machado. Afinal, ao distorcer flagrantemente algumas citas, talvez espere Machado de Assis despertar o leitor para a consciência da apenas relativa importância do que é citado, muitas vezes com seriedade exagerada. Isso, uma vez que qualquer tentativa de reprodução acaba sempre por encontrar-se com os limites humanos, sejam da própria natureza da linguagem, sejam da subjetividade a interferir na interpretação dos fatos, sejam das falhas de caráter, com destaque para a vaidade da qual falávamos e que, via de regra, pesará na escolha das passagens, das palavras, das ênfases, tornando cada discurso tão tendencioso quanto qualquer outro, já que, em primeiro lugar, sempre estarão a serviço da imagem de seu formulador que, inclusive, não só deturpará os fatos, como também os criará, na medida exata de seu anseio pessoal, muitas vezes até inconscientemente.” (p. 52)

 
“E Machado foi ainda mais longe. Além de deixar bem clara a relatividade da importância dos fatos em si, das várias correntes de pensamento e da própria ciência, ele nos mostra que o que o homem fará a partir deles ou em prol deles, estará submetido ainda a suas marés internas e, por conseguinte, acabará por esbarrar com o fator acaso. Comenta Brás Cubas sobre haver sido pego por uma corrente de ar, que fê-lo adoecer, quando se entretinha com sua pesquisa (o emplasto) da cura dos melancólicos:

 
‘Suponha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de uma invenção farmacêutica, tratava de coligir os elementos de uma instituição política, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente de ar, que vence com eficácia o cálculo humano, e lá se ia tudo. Assim corre a sorte dos homens.’

 
“E é assim, submetidos aos acasos e às próprias volubilidade e vaidade, que nos perguntamos o que seria de nosso desejo de conhecer o homem que nos precedeu se não fossem escritores como Machado de Assis que, sinceramente empenhados em tratar da própria condição humana, fazem nas entrelinhas (e melhor do que se História desejassem fazer) importantes retratos de suas épocas. Retratos esses através dos quais acabamos por nos ver, já que, guardadas as devidas proporções, todas as épocas são muito parecidas, pois o homem, essencialmente falando, permanece o mesmo. Não é à toa que os bons romances conseguem, para seus personagens, a identificação de leitores de épocas diversas. O momento histórico é quase como um cenário, para o qual contam também os trajes e os costumes, as escolas filosóficas, as teorias científicas e os postulados religiosos. Os cenários mudam, mas permanecem quase iguais os conflitos, os desejos e os sete pecados capitais.” (p.53)