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sábado, 10 de julho de 2010

CRIME HEDIONDO

Toda sociedade precisa trancafiar seus monstros. Mas depois ela não pode simplesmente lavar as mãos, fingindo que não os gerou no próprio ventre.

Em “O Efeito Sombra”, Deepak Chopra nos fala desse inconsciente coletivo no qual estamos mergulhados, convencendo qualquer um de sua existência através da descrição do funcionamento de uma de nossas glândulas:

“O que você chama de ‘eu’ na verdade é ‘nós’ em grau muito mais abrangente do que você imagina.
A prova pode ser encontrada em seu corpo. O sistema imunológico é um projeto coletivo. Sob seu osso peitoral há uma glândula chamada timo, que produz os anticorpos necessários para que você resista às infecções de germes e vírus invasores.
Quando você nasce, seu timo é subdesenvolvido. Ao longo do primeiro ano de vida, você depende da imunidade do corpo de sua mãe. Mas o timo começa a crescer e amadurecer, até chegar à função e ao tamanho máximo, aos doze anos; depois vai encolhendo. Durante o período de crescimento, o timo lhe dá anticorpos para as doenças que atingem toda a raça humana. Você não tem de ser infectado por doença alguma; a herança da imunidade é coletiva – e, ao mesmo tempo, continuamos a aumentar o depósito conforme deparamos com novas enfermidades.”

Exatamente da mesma forma, segundo Chopra – via Jung, cada um de nós traz na alma todos os arquétipos, todos os sentimentos - bons e maus - que possam perpassar a alma de qualquer outro ser humano. Somos uma construção coletiva antes de nos individualizarmos através do autoconhecimento.

Assim é que a única coisa que pode proteger a humanidade de seus piores aspectos é sem dúvida a CONSCIÊNCIA. Qualquer outro tipo de tentativa resvalará para resultados duvidosos, geralmente regidos pela SOMBRA, que passa a abrigar, em cada criatura em particular e na sociedade como um todo, suas piores facetas. Facetas essas preparadas para assumirem o controle a qualquer momento.

Enquanto indivíduos em particular e a sociedade como um todo maquiarem suas verdades, ao invés de, sempre sob luz suficiente, optarem pela dedicação a seus melhores aspectos, continuaremos sendo surpreendidos e assustados pelas atitudes daqueles mais inconscientes que, ao se mascararem à imagem de outros mascarados, tão longe passam a estar do melhor de si mesmos que se tornam núcleos perfeitos para a materialização do arquétipo maldade através de seus atos abomináveis.

São as vítimas do “efeito sombra” desgraçando outras vítimas em seu caminho de escuridão.

Toda sociedade precisa trancafiar seus monstros: eles não podem por em risco as pessoas a sua volta. E muitas vezes, desgraçadamente, não há sequer como esperarmos que tais monstros possam ser recuperados. Sendo que, para alguns deles, tamanho o grau da perversidade de seus atos, sequer podemos esperar qualquer tipo de humanização através de explicações advindas, por exemplo, do relato de um passado triste.

Mas não dá para pensarmos que os criminosos de todos os tipos, cujas histórias nos são apresentadas várias vezes ao dia, sejam entidades completamente separadas do corpo da sociedade. Não dá para, convenientemente, pensarmos que todos eles se desviaram única e exclusivamente por seguirem sua intrínseca má índole.

Infelizmente, é no que a sociedade tenta acreditar. Aproveitando-se inclusive, como agora, no caso do goleiro Bruno ( vamos considerar aqui a possibilidade de sua culpa ), da queda de certos ídolos tornados bandidos para, por contraste e por alguns momentos, sentir-se do “outro lado”, do lado bom. Fortalecendo sua visão de mundo, maniqueísta, da perfeita divisão entre o bem e o mal.

Por outro lado, a sociedade tenta também culpar as vítimas de cada criminoso com o igual objetivo de conseguir evitar o mergulho nas próprias entranhas, que a obrigaria a deparar-se com a origem de tanta violência e barbárie.

A verdade é que também aquilo que se possa apontar como “provocação” em cada agredido ( como fazem muitos, no caso em tela, levantando a possibilidade de Eliza haver sido uma “interesseira garota de programa” ) pode encontrar suas causas primeiras no âmago dessa mesma sociedade constituída por cada um de nós.

Quais são os valores abraçados por muitos de nossos mais bem situados membros? Dinheiro e poder.
Quem não nasceu em berço de boa madeira e não teve boas oportunidades e educação permanece, como cada outro cidadão, dia e noite, à mercê das novelas, das propagandas, da vida a lhes dizer que não são bons o bastante e que, se quiserem um dia sê-lo, precisam vestir, usar, calçar, ter...
Sendo frágeis de caráter e sabendo ou intuindo o quanto algumas de nossas elites acumularam fortuna às custas de expedientes não muito admiráveis, não será difícil acreditarem que precisam aproveitar qualquer “oportunidade” para conquistarem aquele status que - parece-lhes – virá embrulhado em amor e respeito.

Se nossa sociedade, através das escolhas e das posturas de seus mais respeitados representantes, mostra o tempo todo a suas jovens mais desprotegidas aquilo que tem valor para eles – dinheiro, poder e beleza -, acreditando elas ser seu corpo jovem a única moeda com a qual podem contar para obter os outros dois itens, não é difícil imaginar como muitas delas correrão atrás de seus sonhos.

Partindo-se do princípio de que fosse mesmo esse o caso de Eliza, diante da perspectiva acima, quem lhe teria coragem de atirar a primeira pedra?

E quanto ao goleiro e a seus ditos cúmplices medonhos? ( continuamos considerando aqui a possibilidade de que sejam culpados )

Foi conversando sobre essa história apavorante que eu, a socióloga Maria Lúcia R.Maia e a mestre em Criminologia Crítica Flávia Maia percebemos, em nossos corações, misturada ao horror, nada menos do que compaixão por essas criaturas duras, frias, animalescas, monstruosas.

Como deve ser horrível ser um deles! A verdade é que não dá para imaginar o que seja carregar dentro da alma manchas tão escuras, conviver com tantos fantasmas...

Não é triste ver como a vida humana vale pouco em uma sociedade como a nossa? Não é terrível ver como as pessoas se associam em nome de uma ação bárbara contra outra pessoa em troca de alguns trocados ou, quem sabe, pelo “orgulho” de se aproximar do poder, tornando-se cúmplices de uma celebridade? Não é apavorante ver o mal - todos os dias alimentado pela inversão de valores que fragiliza corpos e tritura almas - de repente se condensar em alguém?

Não conheço a história de vida do goleiro do Flamengo... E prefiro não conhecê-la, para que possamos delinear aqui uma possível imagem do ser humano que rompe de forma assustadora os limites da humanidade, atravessando as fronteiras que separam a pior das fantasias de como livrar-se de um “inimigo” para transformá-la em aterrorizante realidade. ( Objetivo: evidenciar a relação direta de algumas ações com os valores de nossa sociedade, sem, no entanto, pretender justificativas para sua crueldade. )

Menino pobre? Família não muito bem estruturada? Testemunhou tragédias? Sofreu discriminação em função da cor, da classe social? Passou privações? Foi humilhado? Teve como única oportunidade o futebol?

Pois então, de repente, sucesso e dinheiro lhe vêm bater à porta. E aquele menino, que não teve tempo de crescer por dentro, vê-se respeitado e reverenciado...

Fico pensando que, junto com a alegria que o menino Bruno - dentro dele – haja experimentado pela repentina receptividade de todos a sua volta, tenham-lhe também dominado outros sentimentos, alguns terríveis como o desprezo...
Como pode ser, afinal, que pessoas maltratem crianças carentes e batam palmas para homens correndo atrás de uma bola? Do que gostariam elas nele agora? Dos gols que negava ao adversário? Do dinheiro que ganhava? Do poder que começava a ter? Certamente não era “dele”.

Não são poucos os ricos de berço que perdem completamente os limites por desde sempre, lançando-se a um buraco sem fundo, poderem bancar todos os desejos que tenham... Não canso de escrever nesse blog sobre ricos e sua falta de consciência; sobre ricos e sua arrogância; sobre ricos e seu autoengano permanente; sobre ricos e seu vazio; sobre ricos pegos nessa armadilha dos valores por eles mesmos criada...

Mas não é difícil imaginarmos que o pobre tornado rico - se frágil de caráter e, principalmente, se, ao invés de amar, aprendeu a desprezar; se ao invés de conhecer-se, aprendeu a mascarar-se -, seja mais vulnerável ao abismo que se abre diante de todo aquele que pensa, psicopaticamente, tudo poder.

Acredito que Bruno possa haver caído dentro desse abismo.

E, como numa tragédia grega, o filho que tentou negar de todas as maneiras, inclusive, ao que tudo indica, matando sua genitora, foi o mesmo que, segundo testemunhas, parece de repente haver resolvido poupar do planejado assassinato.

Sendo comprovadas todas as denúncias, que receba a pena máxima cada um dos membros dessa macabra quadrilha.

Mas que a sociedade, ao invés de comemorar o encarceramento do “outro” perverso, recolha-se em profundas reflexões, certa de que esse outro é ela mesma.