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quarta-feira, 14 de julho de 2010

"Capitalismo: uma história de amor"

Assisti a todos os documentários do cineasta Michael Moore.

Todos geniais. Mas nenhum que se compare ao último, “Capitalismo: uma história de amor”. Esse só podemos comparar ao excelente "The Corporation", do qual Moore apenas participou.

"Capitalismo..." começa traçando um paralelo entre a decadência do Império Romano e a América de Bush.
E prova, em cada um de seus minutos, que a decadência americana, das duas, pode ser a pior; e mostra que muita coisa precisa ser feita – ele convoca cada um de seus espectadores nesse sentido - para evitar-se o definitivo caos.

Se assistir às entrevistas nos "especiais", verá que, em seu brilhante depoimento, Chris Hedges, do New York Times, traça também um paralelo entre a ascensão e a queda de todos os imperialismos, como, segundo ele, devem ser considerados os Estados Unidos da América. Ele cita Marx, segundo o qual o capitalismo transforma tudo em mercadoria, inclusive os recursos naturais e os seres humanos, concluindo: “O capitalismo irrestrito ou não regulamentado está relacionado a sociedades que se autocanibalizam”.

Dentre outras coisas, o documentário trata de:

1) Seres humanos despejados das casas nas quais moraram por 20, 40 anos: nenhuma pena ao tomarem os imóveis daqueles que não conseguiram fazer frente aos absurdos termos dos contratos assinados em renovadas e incentivadas hipotecas. Enquanto amigos dos diretores das financeiras, mesmo já sendo ricos, segundo Moore, recebiam empréstimos e assinavam contratos suaves, dos quais as taxas extorsivas eram abolidas e os descontos multiplicados.
Moore lembra Thomas Jefferson, que dizia, em 1816: “Eu sinceramente acredito que os bancos são mais perigosos do que exércitos de prontidão”.

2) Importantes empresas que fazem seguros de vida milionários para seus funcionários, colocando a si mesmas como beneficiárias e não as famílias dos pelos patrões chamados “caipiras mortos”.

3) Demissões.

4) Derivativos.

5) Baixíssimos salários para algumas categorias, como a dos pilotos.

6) “Golpe de estado financeiro”. Acordos abjetos entre o sistema financeiro e o governo.
Wall Street no comando.
Wall Street recebendo ajuda dos cofres públicos. Enquanto o povo... nada.

7) Como só resta aos melhores alunos das melhores universidades trabalharem para os bancos, ao terminarem seus cursos – ficando longe de trabalhos nos quais poderiam utilizar todo o seu potencial -, caso queiram pagar a dívida milionária contraída com esses mesmos bancos, que - quase uma armadilha - financiaram seus estudos.

8) Como em Wilkis-Barre, Pensilvânia, juízes e empresários, após fecharem o reformatório público, associaram-se para construir uma casa de nome “agradável”: “Assistência à Criança da Pensilvânia”.
Empregaram 8 milhões de dólares na construção, que o condado alugou por 58 milhões.
Como precisavam de delinquentes para dar utilidade e movimento ao projeto milionário, outros juízes foram cooptados: eles precisavam aumentar a taxa de condenações.
Segundo Michael Moore, os juízes receberam mais de 2,6 milhões por mandarem internar o menino que jogou um bife em cima do padrasto durante o jantar, a menina que brigou com a melhor amiga num shopping, a adolescente que criou uma página na internet para criticar a vice-diretora da escola, que considerava rígida e sem senso de humor... "Cerca de 6.500 jovens foram condenados injustamente."
E o empresário logo aplicou seus milhões na compra de um jatinho e de um iate batizado como “REEL JUSTICE”.

9) Memorando secreto do Citibank sobre seu plano de controlar o mundo.
Em 2005 e 2006, conta-nos o cineasta, o Citgroup criou 3 análises secretas para seus maiores investidores.
Diziam que os Estados Unidos não eram mais uma democracia, mas uma plutonomia: "uma sociedade controlada exclusivamente por e para o benefício do 1% mais rico da população.”
O memorando celebrava essa diferença crescente e o fato de poderem se considerar uma aristocracia.
Aristocracia essa que poderia ser abalada apenas se a sociedade viesse a exigir uma parcela mais justa do bolo servido. Uma improvável revolta dos “caipiras”.
Lamenta o documento que o povo, que são 99% da população, tivesse, como eles, os privilegiados, direito ao voto. Mas comemora a triste realidade: os caipiras não usariam sua força porque estavam subjugados a outra muito maior. Uma força maior mesmo do que o “sonho americano” - que parece agora meio desfeito pelos últimos acontecimentos. Eles contavam era com a ilusão sob a qual vivia cada um daqueles que constituíam os 99% restantes da população de seu país. Ilusão essa que consistia em acreditarem piamente na possibilidade de, se continuassem tentando, poderem um dia usufruir de parte de toda a riqueza, de todos os benefícios e conforto que eles, o 1%, atiravam-lhes na cara todos os dias.
Sua estratégia, então, teria de ser fomentar essa crença, continuar colocando a cenoura à frente dos caipiras, para que eles continuassem puxando a carroça. Dispostos a não reclamar das posturas erradas, porque dispostos, aqui e ali, a errar também.

Nesse ponto, tive de me lembrar de um filme que quase deixo de comentar no blog: “A Caixa”.
É a história de um casal que recebe uma caixa com um botão vermelho e as instruções: se apertarem o botão, receberão um milhão de dólares, mas terão de conviver com a certeza de que, no exato momento de sua escolha, ao apertarem o botão, alguém, certamente um DESCONHECIDO, irá morrer.
Após não muito grande hesitação, a mulher aperta seu futuro: no dia seguinte, o homem que lhes vai entregar a mala com o dinheiro informa-os de que a caixa naquele momento mesmo seria levada para outro casal. Casal esse do qual eles eram certamente DESCONHECIDOS.

A verdade é que "A Caixa" teria tudo para ser um bom filme ( mas o diretor parece se haver perdido em algum momento ), partindo dessa proposta: mostrar como cada homem, mergulhado até o pescoço nessa ânsia capitalista de ter, ter, ter, esquece por completo qualquer sentimento altruísta. E a cada vez que um homem decide egoistamente, sem querer saber como seus atos irão afetar outras pessoas, sobre qualquer coisa em sua vida, ele certamente se está esquecendo de que, naquele exato momento, várias outras pessoas estão agindo da mesma forma, em relação a uma infinidade de coisas que podem, sim, acabar por atingi-lo de alguma forma.

Quando empresas e governos se associam em função de interesses escusos... Quando um homem assina um contrato superfaturado, desvia dinheiro da saúde ou da educação, pode estar causando danos importantes à vida de muitos jovens carentes. Inclusive, armando-os. Inclusive, matando-os e a suas famílias.
Quantos homens agem assim todos os dias, ao decidirem apertar o botão vermelho de suas caixas, num assustador "dane-se"?

Quando um jovem delinquente se vê, em seu descaminho, diante da decisão de apertar ou não um gatilho - botão vermelho da caixa que a ele é apresentada -, não raro os criminosos do colarinho branco - que, muitas vezes, conseguem permanecer autoenganados, evitando a consciência e as consequências do resultado mortal de seus atos - estão a seu lado. Em forma das privações que possam haver imprimido àquela vida. Em forma dos valores que, através de suas escolhas e posturas, sempre de cima para baixo, ajudaram a impor à sociedade como um todo.

Ao bandido armado, sabemos, horrorizados, qual destino oferecer: cadeia.

Mas até quando a sociedade vai se autoenganar, acreditando combater a corrupção apenas exigindo fichas limpas de candidatos a mandatos políticos?

O criminoso do colarinho branco está muito perto do homem comum. E deve ser reconhecido todas as vezes em que propuser uma ação premiada em prejuízo de um inocente ou da sociedade. Ele deve ser reconhecido sempre que seduzir com sua boa aparência e seu poder (poder inclusive de recompensar os que se sujarem para mantê-los limpos e cheirosos) para sutilmente levar outros a ajudá-lo na prática de cada uma das ações necessárias a seus objetivos finais.
Acredito que cada grande criminoso conte com a colaboração de muitos dos pequenos aspirantes a seu posto. Inclusive dentre aqueles "caipiras" correndo atrás da cenoura lembrados no memorando do Citibank citado por Michael Moore.

Se, ao invés de namorar com o poder, cada homem comum passasse a se preocupar de fato com a sociedade que vai deixar como herança para seus netos... Ajudaria muito se, em lugar de colaborar com os criminosos do colarinho branco - por ação ou omissão - passasse a realmente se indignar com a injustiça, com o abuso de qualquer tipo de poder.
Se cada funcionário ou familiar próximo a cada um desses bandidos perfumados tivesse coragem de admitir que não é - como costumam justificar suas ações -pensando no futuro dos filhos que resolvem facilitar qualquer tipo de atitude duvidosa, já seria meio caminho andado na direção de uma sociedade mais justa. Mas certamente precisa-se de muita coragem para olhar-se por dentro e perceber que, em um quase consciente autoengano, em uma tola vaidade, no fútil desejo de compartilhar poder e benefícios, é que, com agrados e servilidade, colabora-se todos os dias no sentido de que objetivos nada admiráveis possam ser atingidos.

A verdade é que se, de repente, em lugar da costumeira reverência e respeito encontrados a sua volta, os bárbaros de gravatas encontrassem expressões de nojo e desconfiança, duvido muito que continuassem a seguir seu caminho tão confortavelmente autoenganados. Tenho certeza de que acabariam sendo obrigados a, diante do espelho, tirar a cara de pau.

Porque a grande verdade é que o que todo ser humano quer é admiração e amor. E não duvido de que muitos de nossos criminosos de grife hajam buscado o poder sobre as pessoas como forma de seduzi-las... Quem sabe se lhes déssemos a chance de perceberem que escolheram o caminho errado, ao confundirem reverência, "puxação de saco" e medo com o sentimento fraterno, ainda tenham oportunidade de dar outro rumo a suas vidas?

Pode parecer infantil de se dizer, mas precisaríamos nos convencer em definitivo de que adianta, sim, começarmos a reformar o mundo a partir de nós mesmos. Se você age egoistamente, pensando que todos agem assim, imagine que alguém, ao detectar em você um comportamento altruísta, possa vir a querer imitá-lo também. Em sociedade, esse efeito é imediato...

Se, ao ler esse texto, por exemplo, sentiu um calorzinho no peito chamado esperança, é porque no fundo você acredita no que lhe digo.
Coragem!

Mas voltemos a Michael Moore. Não é que, em alguns momentos, ele nos parece dizer que a humanidade pode não estar de todo perdida?

E ele nos fala de alguns episódios recentes nos quais o povo, unido, pôde se considerar vencedor.

E ele nos lembra do Dr. Salk, inventor da vacina contra a poliomielite, que se recusou a patentear seu invento, dizendo que era ele resultado de seu trabalho, pelo qual havia sido bem remunerado como professor e pesquisador da universidade.
Estava ele satisfeito por ver o fruto de seu esforço tornando-se patrimônio da humanidade.

E Moore nos mostra que existem empresas, das quais os presidentes e diretores, ao invés de robôs gananciosos, são, como o Dr. Salk, seres humanos sensíveis, que sabem abrir mão daquilo de que não precisam em benefício de todos aqueles com os quais trabalham. Todos os funcionários nessas – ainda raras – empresas ganham salários igualmente dignos.


Na verdade, veríamos despontar rapidamente uma sociedade mais justa se cada um dos mais ricos abrisse mão apenas de parte daquilo de que não precisa, ao invés de vorazmente arremessar-se em luta ridícula para obter o primeiro lugar dentre os mais abastados.

Será que precisam chegar lá para descobrirem o que o homem mais rico do mundo, Warren Buffett, descobriu? Pois, segundo Moore, em 2007, ele declarou:

“É luta de classes, minha classe está ganhando, mas não devia.”

Enfim, mais uma vez desligo a televisão com uma espécie de alegria por poder contar entre nós com seres humanos como esse cineasta determinado a fazer a sua parte em prol de um mundo melhor para todos.
É emocionante ouvi-lo dizer:

“Eu me recuso a viver em um país como esse. E não vou embora.”