Arquivo do blog

sábado, 3 de julho de 2010

A descriminalização pura e simples do uso de drogas

Organizei esse texto ( composição de alguns escritos anteriormente e já nesse blog, ao lado de outros inéditos ) semanas atrás, em função da sugestão de conhecido jornalista ( para análise e possível publicação em seu site ). Segue ele agora aqui, com novo título e os acertos que considerei necessários para uma sua efetiva publicação.

Entendo a defesa da descriminalização do uso de drogas como uma manifestação da consciência crescente de que este é um problema da esfera da Saúde Pública. E essa consciência é indispensável.Mas não consigo compreender que esse movimento não seja acompanhado de ampla discussão sobre a legalização e a regulamentação tanto da produção, quanto da venda e do uso dessas substâncias, cujo comércio ilegal tantos prejuízos tem trazido à sociedade; e cujo caráter criminoso dificulta o trabalho daqueles profissionais dedicados à prevenção de seu uso e ao tratamento dos dependentes químicos.

A sociedade é um todo de partes articuladas entre si. Não existe solução satisfatória para qualquer problema atual que não passe pela reestruturação desse todo. Assim, soluções para questões como drogas e violência só serão delineadas de fato quando dermos prioridade à revisão dos valores que temos abraçado e que perpassam a vida e as ações de cada um de nós. Uma espécie de psicanálise social talvez fosse do que precisássemos. Sem brincadeira.

Enquanto jovens das classes média e alta estiverem à deriva ( muitas vezes desconfiados daquilo que seus próprios pais defendem através de suas posturas diante da vida, incluindo-se aí até mesmo o uso de algum tipo de droga ), com um grande vazio nunca preenchido por todas as coisas que o dinheiro possa comprar, sempre haverá mercado para quaisquer drogas, legais ou ilegais...
Enquanto a miséria jogar outra parcela de nossos jovens no vício e nas mãos dos empresários do crime, a violência só aumentará.

Por enquanto, insisto que precisamos ampliar a discussão sobre o assunto. E gostaria de destacar as três principais razões que identifico para que pais, mães, médicos, educadores, intelectuais, psicólogos, jornalistas, políticos, juristas e seres humanos de modo geral discutam o retumbante fracasso da política repressiva segundo a qual o assunto vem sendo tratado, e que a simples adoção da descriminalização do uso de drogas, a médio e longo prazos, talvez possa exacerbar.

A primeira dessas razões é que não podemos deixar de pensar na possibilidade de que essa simples descriminalização possa vir a se tornar medida de caráter elitista, uma vez que, de certa forma, seus maiores beneficiados podem acabar sendo os dependentes das classes mais abastadas.

Em "Acionistas do Nada" – ao qual faço menção no romance “A Juíza”, o delegado Orlando Zaccone nos fala daqueles que seriam os escolhidos "para pagar o pato" no que se refira ao assunto drogas.
Membro da "Law Enforcement Against Prohibition", organização internacional dedicada à defesa da legalização das drogas -, em recente entrevista ao jornal “O Globo” ( Revista de Domingo ), ele diz que a proibição é mantida “para se incrementar a guerra contra o inimigo do Estado.” E ele explica: “O Estado sempre precisou de inimigos: bruxas, hereges, comunistas. Hoje, são pobres armados. É só uma questão política”.
Segundo o delegado, na mesma entrevista, a última ponta do negócio das drogas é o varejo e é nela que a repressão atua: “Uma pesquisa da UFRJ mostra que a maioria dos presos do Rio são traficantes pegos sozinhos, com pequenas quantidades. Ou seja, aviões. Essa política que rotula os pequenos participantes do negócio é o que nos faz questionar o interesse da repressão. O comércio de drogas gira mais de 500 bilhões de dólares/ano. A repressão não quer atingir a base econômica, que interessa ao sistema. O dinheiro das drogas circula, sai do mercado ilegal para o legal. Quantas investigações há no Brasil sobre lavagem de dinheiro de drogas? Nenhuma”.

Inconsistência: temos ouvido que quantidades pequenas, apreendidas com portadores das classes média e alta, podem ser consideradas para uso pessoal, desqualificando o tráfico. O que pode ser bastante preocupante, se acreditarmos nas previsões do sociólogo Fabiano Monteiro - pesquisador do Viva Rio, em reportagem do Globo ( 09/5/10 ) intitulada “Pacificação e venda de drogas lado a lado” -, que prevê, diante do “fim hipotético das guerras por territórios do tráfico”, “o crescimento de venda e de compra de drogas na classe média”.

A segunda razão para que discutamos a possibilidade da legalização das drogas é ser de difícil compreensão o fato de uma sociedade poder conviver passivamente com a ideia de que seus jovens - diante da descriminalização do uso de quaisquer substâncias ilegais - mantenham relações comerciais com a criminalidade.
Isso não cheiraria a hipocrisia? Isso não falaria a favor da possível existência de espécie de acordo de cavalheiros entre a sociedade e a marginalidade?

O fato é que, durante a leitura do Globo, no mesmo dia, encontrei matéria intitulada “Tráfico adota nova tática para conviver com UPPs”, que me causou profundo sentimento de estranheza.
Longe de mim a ideia de fazer qualquer crítica às autoridades abaixo, citadas na reportagem em questão: além de respeitá-las, imagino que seu trabalho não seja nada fácil. O que possa parecer aqui crítica que seja lido como perplexidade. Perplexidade essa que, faço questão de frisar, pode haver sido provocada por uma defeituosa leitura minha do texto, ou, por outro lado, por uma sua defeituosa elaboração ( do texto ), ambas as coisas favorecendo possíveis interpretações equivocadas. Assim, recomendo a leitura do citado jornal a todos que leiam o presente artigo.

Como a matéria em questão nos leva a entender, o governo passa espécie de recado às facções: “o tráfico do Rio terá que abandonar o armamento de guerra e deixar de lado o domínio de território em troca de sua própria sobrevivência: a venda de drogas”.
Foi isso mesmo que eu li - “em troca”? Mas essa não seria uma terminologia utilizada em acordos explícitos ou implícitos!!!?

E mais adiante, em três diferentes momentos da reportagem, que reproduz, indireta ou diretamente, palavras do secretário de segurança do Rio José Mariano Beltrame:

1- “...sozinhas, as UPPs não têm a pretensão de acabar com a venda de drogas, e sim o objetivo de devolver a liberdade às comunidades dominadas pelos traficantes.”

Sobre os possíveis próximos passos dos traficantes, em vista das UPPs:
2- “Pode ser que agora, em áreas mais fortes e significativas, eles tentem aí uma outra saída, como retornar a estratégias dos anos 80 ( quando a droga era vendida de forma discreta, através de “esticas” ou “aviões”, e os traficantes se protegiam com armas leves ).”

E, quase uma contradição com afirmação anterior:
3- “Independente da reorganização que o tráfico tente fazer, a sociedade tem o poder de polícia. Temos o poder da força e, se tivermos que usá-la para seguir com o programa ( das UPPs ), vamos usar. A segurança é planejada, existe peça de reposição, treinamento, escala de plantão, alimentação. Agora, essas pessoas ( bandidos ) que ficam lá, armadas, eu não sei em que escala vão trabalhar.”

Parecendo fazer coro a tais declarações, na mesma página, encontramos palavras segundo o jornal do chefe de Polícia Civil Allan Turnoviski: “O tráfico vai ter que aprender que não poderá mais continuar armado”.

Resumindo, a matéria em pauta parece querer nos levar a crer que se tem a “força” mas não se tem a “pretensão” para acabar com a venda ilegal de drogas... E sobram pontos de interrogação... Pergunta 1: se podem desarmar o tráfico, por que não podem acabar com ele? Pergunta 2: o objetivo a ser atingido não ficaria parecendo ser a hipócrita aceitação da venda ilícita, desde que problemas identificados como críticos pelos defensores da legalização das drogas, como a violência da guerra do tráfico e a utilização pelos traficantes de armamento pesado, pudessem ser “amenizados”?

E é aí que nos deparamos com a terceira razão, talvez a mais séria para a necessidade dessa discussão em torno da legalização regulamentada das drogas, que seria a grande probabilidade de, a médio prazo - em face da adoção da descriminalização pura e simples do uso de drogas -podermos vir a verificar um aumento significativo da dependência química ( o uso desmedido do álcool aí incluído ), além dos episódios de violência, desumanidade e falta de limites envolvendo jovens das classes mais altas.
Simplesmente porque tal situação, ao, de certa forma, permitir aos jovens o trânsito livre pela ilegalidade – ilegalidade essa que continua a existir mesmo com menos armas nos morros e guerra arrefecida -, colocar-se-ia contra qualquer princípio educativo. E essa hipócrita contradição poderia favorecer, a médio prazo, a estruturação, em nossos jovens, de personalidades nada sadias, na medida em que as divisas entre o legal e o ilegal, entre o que não deva ser punido e o que deva ser punido não ficariam muito claras. Inclusive isso podendo favorecer o fortalecimento do sentimento fascista – infelizmente já presente em alguns grupos de jovens - da superioridade em relação aos mais humildes – aqueles que, em nossa sociedade, continuariam a ser selecionados pela justiça para pagar por seus crimes.

Obs. Outro texto que merece ser lido e relido, em busca de sua melhor interpretação: no site “Globo – Opinião”, o artigo de Alex Ramos de Faria, intitulado “O Tráfico e as UPPs”, no qual o pesquisador afirma que os traficantes não andavam armados pesadamente para se defenderem da polícia, mas para se defenderem das facções rivais. Sendo que, em vista das UPPs, que acabaram ( ironicamente ) fazendo para eles o papel da segurança, eles puderam abrir mão de suas próprias armas e estão podendo “trabalhar” em paz.

Bem, assim sendo, talvez pudéssemos resumir os três principais motivos aqui apresentados para que questionemos a descriminalização das drogas sem uma discussão paralela em torno de uma sua legalização regulamentada, caracterizando a medida parcial através de três palavras: elitista, hipócrita e deseducativa.

Pensemos mais um pouco: além dos que defendem a manutenção do caráter criminoso das drogas por verdadeiro convencimento e daqueles que o fazem por conta de qualquer interesse escuso, há os que o fazem por conta do grande equívoco que é acreditar que os que defendem sua legalização estejam automaticamente defendendo as drogas em si mesmas.

A bandeira em defesa da legalização das drogas é na verdade em favor da Lei e do Estado de direito propriamente dito; da dignidade humana e da abordagem da questão das drogas pela perspectiva da saúde pública.
Se um "Estado de direito" prevê que todos se submetam às mesmas leis e regras, e se percebemos a diferença do tratamento dado a drogas como o álcool, o tabaco e as anfetaminas, talvez devêssemos refletir sobre a hipocrisia de tal situação em face também dessa perspectiva.

Aos inúmeros argumentos que podem ser elencados a favor da legalização das drogas, deveríamos acrescentar ainda - lado a lado com a questão do prejuízo que a hipocrisia, se oficializada, poderia trazer para a juventude - a possibilidade de vermos os recursos dispendidos na repressão, retumbante fracasso, direcionados, além de para o tratamento digno dos já comprometidos pelo vício, a campanhas de prevenção; à formação de professores; à criação de possibilidades de emprego-estágio ( que preparariam os jovens para atuarem em diversas áreas, de acordo com suas aptidões, ali também avaliadas ) para os jovens carentes - incluindo-se aqueles em recuperação; à educação geral mesmo, que, sem dúvida, acabaria por resultar em maiores chances de vermos nossos jovens crescerem cada vez mais longe de qualquer droga.

Hélcio Fernandes Mattos - psiquiatra, psicanalista, professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador do CRIAA-UFF ( CAPS-ad/ Centro Regional Integrado de Atendimento ao Adolescente ) - faz questão de frisar: “o projeto de legalização das drogas, da mesma forma como ocorre hoje em relação à guerra contra as drogas, teria de ser aprovado pela ONU, e dele todos os países teriam de participar”.

Para ele, em artigo intitulado “A REDE DE APOIO SOCIAL NAS INTERVENÇÕES COM USÁRIOS DE DROGAS”, material didático do curso de especialização da UFF _ “Prevenção às Drogas e Escola – 2008”:

”... mais do que liberar verbas para as ações não repressivas, a legalização permitiria que as relações entre os responsáveis pela direção político-administrativa e os usuários deixassem de ser centradas na perspectiva punitiva. Sem falar que a ambiguidade em relação ao tipo de intervenção e o tempo necessário para se avaliar os resultados seriam reduzidos. Embora a decisão da legalização se fundamente e cresça mais a partir do fracasso contínuo da política repressiva do que da certeza dos resultados específicos que poderiam ser obtidos, haveria uma fundamental mudança no cenário no qual até hoje se encontram os usuários e os responsáveis pelas diferentes intervenções.”

E: “... na medida em que a legalização produziria uma inflexão nos objetivos da intervenção e nos meios utilizados para atingi-los, a condução das ações deixaria de ser centrada na punição, criando-se a possibilidade de se conseguir que o sofrimento da família ou do usuário ocupasse o lugar de destaque antes reservado à proibição.”

A verdade é que imaginar como se organizaria a sociedade em função da legalização das drogas é algo bastante difícil. Será naturalmente árdua a tarefa de regulamentar cada passo da produção, venda e uso de cada droga. Mas poderíamos desde já idealizar alguns procedimentos a terem lugar então: isso faz parte do caráter mesmo desse amplo debate que proponho.

Sigamos pensando: da mesma forma que o bom senso não pode aceitar que, no caso, por exemplo, da legalização do jogo no país, possam vir a ter o direito de administrá-lo aqueles que vêm mantendo seu funcionamento na ilegalidade ( seria declaração pública de que o crime compensa ), também não posso imaginar a possibilidade de que, após a legalização das drogas, qualquer um dos envolvidos em seu tráfico, produção e/ou comércio ilegais venha a desfrutar de qualquer privilégio na nova fase.

Assim é que, como ocorre na venda dos remédios de tarja negra, a venda de drogas, a partir de sua legalização, poderia passar a ser subordinada ao Ministério da Saúde, exigindo um documento assinado pelo comprador. Poderia haver algum controle de seus usuários, do quanto se drogam, de seu comportamento, daquilo que fazem sob o efeito da droga ( e a descrição de medidas disciplinadoras )... E seu médico ou CAPS ad, ao qual teria de se apresentar regularmente para tratamento e acompanhamento, seria informado de suas solicitações de substâncias.
Como o álcool, qualquer droga teria de ser proibida a menores, claro.

Segundo o coordenador do CRIAA-UFF, no artigo já citado, “na concepção de The ecomomist, a proposta [legalização] é considerada não como a solução, mas sim como um mal menor, já que ‘a proibição parece ser ainda mais prejudicial, especialmente para os mais pobres e fracos do mundo. A legalização não vai acabar com os problemas da criminalidade decorrrente do uso das drogas, mas, como com o álcool e o cigarro, haverá impostos e regras para conter as distorções’. Ou seja, a legalização permitiria que fossem criadas formas de controle e que se pudesse conhecer mais e melhor sobre o consumo de drogas”.

Sem falar que, de acordo com Mattos ainda, “uma nova prática de intervenção, aprovada oficialmente, influenciaria na construção de um novo imaginário social, consolidando-o, pouco a pouco, nas relações com os usuários e entre os profissionais. Da mesma forma que hoje a prática repressiva se manifesta em diferentes setores da sociedade, sem que seja percebida, de forma clara, as suas origens”.

Enfim, acredito haver conseguido demonstrar aqui a necessidade de ampla discussão sobre o assunto “legalização das drogas”. Que certamente será infinitamente mais produtiva se cada um desde já se empenhar em um corajoso mergulho dentro de si mesmo, na tentativa de perceber o reflexo do capitalismo selvagem no desejo humano, resultando talvez, por um lado, no número cada vez maior de adictos e, por outro lado, na construção de um processo histórico baseado no casuísmo.

Há sempre um desejo, um interesse a ser atendido... Enquanto a verdadeira construção de um mundo melhor para todos – no qual certamente vislumbramos uma cada vez menor demanda por qualquer tipo de droga - é sempre empurrada para um amanhã que nunca chegará, se não não nos conscientizarmos de que o amanhã sempre começa hoje.