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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A EVOLUÇÃO DA HUMANIDADE ENQUANTO TODO

Abaixo, com os ajustes que julguei necessários, dois trechos do meu "Vaidade é Loucura ( na obra de Machado de Assis )" - recebido com carinho por Wilson Martins.

1) “Uma visão de mundo transcende tempo e espaço. Assim é que nos percebemos traçando paralelos entre aquela que nos parece ser a de Machado de Assis e a de mais um pensador não-contemporâneo ao escritor. Para Teilhard Chardin, nascido apenas quando Machado já elaborava as mesmas questões, 'os modos de proceder da vida são três: a profusão, a inventiva e a indiferença para com os indivíduos'. Sobre este último modo de proceder da vida, afirma:

‘Quantas vezes a Arte, a Poesia, e até a própria Filosofia não têm pintado a Natureza como uma mulher de olhos vendados, pisando uma poeira de existências esmagadas [...]
Pelo fenômeno da associação, a partícula viva é arrancada a si mesma. Presa num conjunto mais vasto do que ela, torna-se parcialmente escrava deste. Deixa de pertencer a si própria.
E o que a incorporação orgânica ou social faz para a distender no Espaço, realiza-o não menos inexoravelmente no Tempo o seu acesso a uma linhagem. Pela força da ortogênese, o indivíduo encontra-se incorporado na fieira. De centro, torna-se intermediário, elo. Já não existe: transmite.’

E parece-nos que era dessa transmissão quase mecânica, desse legado inconsciente, que tratava o Brás Cubas de dizer não haver deixado filhos para herdar, como se fora possível, assim, interromper a corrente... Quanto a Machado, constatamos a consciência que já demonstrava ter dessa inexorável cadeia humana ( magnificamente sintetizada na herança deixada por Quincas a Rubião, que, por sua vez, deixando uma “coroa”, pede que seja guardada), dessa complexificação advinda de uma organização cada vez maior da consciência sempre e sempre acrescida e transmitida de um para outro homem, e para cujo desenvolvimento certamente contribuiu sobremaneira o escritor.

Para Teilhard Chardin, tal expansão da consciência obedece ao mesmo processo que antes ocorreu com a matéria, que teria, através de um processo incessante de complexificação, culminado no surgimento da vida e da consciência, no caminho da evolução. Para o padre e cientista, ainda, a cada vez maior organização das consciências acabaria por culminar naquilo que chamou de algo hiperpessoal (no ponto ômega) ou “Cristo Cósmico”.

Parece-nos que Machado já nos obrigava a olhar para tal possibilidade, sempre despertando nossa consciência, nossa crítica, fazendo-a projetar-se sobre nossa sociedade; mas sempre preocupado em nos interromper de nossa projeção para percebermos quem somos cada um de nós, tijolos dessa sociedade.

Como vimos no capítulo intitulado “A aurora possível”, a tomada de consciência, a lucidez quanto a nós mesmos, a que parece o tempo todo nos querer levar Machado, faz ecoarem as palavras de Pascal, cujos excertos, de resto, vemos como parte integrante da obra machadiana.


‘O homem é grande quando se reconhece miserável’, dizia Pascal. Reconhecimento que, se durante a leitura dos textos de Machado de Assis concretiza-se, vislumbramos a possibilidade da construção de sociedades verdadeiramente humanas, cujas bases decerto trariam a compaixão resultante da consciência do quanto é ilusória a nossa noção de individualidade, mantida por nossos egoísmo e vaidade.

Assim é que, sempre preocupado em criticar nossos sistemas filosóficos e nossas instituições -relativizando todo e qualquer valor, mas certamente comungando com Schopenhauer, segundo o qual a salvação é, sim, possível ao homem compassivo que ‘compreende a vaidade das rivalidades e do egoísmo dominador, entendendo que seu sofrimento e o do outro são um único sofrimento' -, parece que o autor antecipava mesmo o pensamento de Teilhard , segundo o qual:

‘A Saída do Mundo, as portas do futuro, a entrada no Super-Humano, não se abrem para diante a alguns privilegiados apenas, nem a um só povo eleito entre todos os povos! Elas não cederão senão a um empurrão de todos juntos, numa direção em que todos juntos se podem reunir e completar numa renovação espiritual da Terra.’”


2) “Busquemos em Teilhard Chardin o esclarecimento necessário à nossa negação da individualidade, a fim de que não a confundam com qualquer tipo de panteísmo:

‘Seja em que domínio for - quer se trate das células de um corpo, ou dos membros de uma sociedade, ou dos elementos de uma síntese espiritual - a União diferencia. As partes aperfeiçoam-se e completam-se em qualquer conjunto organizado. Foi por termos descurado esta regra universal que tantos Panteísmos nos transviaram no culto de um Grande todo em que os indivíduos se perderiam como uma gota de água, se dissolveriam como um grão de sal, no mar. Aplicada ao caso das somas da consciências, a Lei da União livra-nos desta perigosa e sempre renascente ilusão. Não, ao confluírem segundo a linha dos seus centros, os grãos de consciências não tendem a perder os seus contornos e a misturar-se. Acentuam, pelo contrário, a profundidade e a incomunicabilidade de seu ego.
Quanto mais se tornam, todos juntos, o Outro, mais se acham “eles mesmos”’

Na verdade, foi justamente por não querermos nos comprometer com qualquer confusão com o panteísmo que preferimos ligar Machado ao pensamento teilhardiano do que ao hegeliano. No entanto, não podemos deixar de acenar para as semelhanças entre as três filosofias.

O panteísmo de Hegel, diferentemente do panteísmo de Spinoza - que identificava Deus com a natureza -, identificava Deus com a História. Deus seria o que se realizaria na História. Como Teilhard Chardin, Hegel observa a progressiva complexificação dos "seres", no decorrer da história da Terra: minerais, vegetais, animais e, enfim, seres providos de consciência, que se organizam em civilizações.

Para ele, a razão é progressiva, pois sempre algo de novo é acrescentado ao que já existia, ou seja, o espírito do mundo ( ou realizações humanas) progride com a humanidade sempre para a frente, para o absoluto, para uma consciência cada vez maior de si mesmo. Primeiro, o espírito do mundo se conscientizaria de si mesmo no indivíduo; depois, num nível mais elevado dessa consciência, na família e na sociedade, e, finalmente, atingiria a forma mais elevada do autoconhecimento na razão absoluta, ou seja, na arte, na religião e principalmente na filosofia.


Afirma ele:

‘A verdade é o todo. Mas o todo não é senão essência que se conclui por seu desenvolvimento. Há que dizer do absoluto que ele é essencialmente resultado, que ele não é senão por fim o que ele é em verdade, e é nisto precisamente que consiste sua natureza de ser sujeito atual ou Devir de si.’

E é esse mesmo sentimento quase otimista, de crença em alguma coisa para a qual seguir, e que nega tudo o que contrariamente houver sido dito com o intuito de rotular-se Machado de Assis de pessimista, que encontramos, mais uma vez, em texto do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas:

‘A justiça, cujo advento nos é anunciado em versos subidos de entusiasmo, a justiça quase não chega a ser um complemento, mas um suplemento; e assim como a teoria da seleção natural dá a vitória aos mais aptos, assim outra lei, a que se poderá chamar seleção social, entregará a palma aos mais puros. É o inverso da tradição bíblica; é o paraíso no fim.’

Estas palavras, nas quais fica bastante evidente a importância da qualidade, da pureza de cada homem na construção de uma sociedade, apontam claramente para a possibilidade de se participar ativa e conscientemente do processo de seleção a que estaríamos submetidos, sob o prisma de qualquer evolucionismo. Essa participação poder-se-ia dar, por exemplo, apenas ‘trocando-se a orientação no tempo para um absoluto incognoscível (Spencer) por uma orientação no tempo para um absoluto místico ( Teilhard Chardin)’.

Tal participação, que parece ser nada mais do que a busca permanente de crescimento moral e espiritual, a partir da tomada de consciência quanto a nossas piores mazelas, aponta certamente para a liberdade. Liberdade que toda a obra machadiana, ao instigar e provocar a lucidez dos homens, parece ter como objetivo último e final.

Afinal, talvez o homem seja mais covarde do que mau. Um dia, descobriu que poderia mentir e lucrar com isso, quem sabe um choro para galgar um colo? E tornou-se um grande mentiroso... Mas o pior aconteceu quando intuiu que os outros haviam descoberto a mesma coisa: desconfiado, é provável que, desde então, através dos séculos, venha buscando proteção em coisas como dinheiro e poder...

A verdade é que o ser humano, ao longo da História, tem se mostrado capaz de muitas coisas terríveis em função de sua enorme insegurança. Insegurança essa que acabou ganhando contornos dos sete pecados capitais, com destaque para a louca VAIDADE... E, tal qual o alienista do conto, cada um vai projetando nos outros suas próprias imperfeições e protegendo-se delas... Só o despertar de uma aguda consciência para lançá-lo na busca de seus melhores aspectos, passando a projetá-los também em seu vizinho...

Mudar-nos para mudar a sociedade, parece-nos a lição máxima de nosso mestre, Machado de Assis...

'Ao vencedor, as batatas!', afirmava Spencer, referindo-se à sobrevivência, à detenção do poder advindo da força, à posse de mais bens e alimentos.

No entanto, qualquer vencedor, submetido à seleção natural, em dado momento, pode deparar-se com aquele que venha rendê-lo, apossando-se de sua coroa. E esta, decerto, deve ser a maior das angústias humanas: o medo, a insegurança, a expectativa...

'Ao vencedor, as batatas!', tendo em vista a "seleção social" imaginada por Machado de Assis, um dia haveremos de poder declarar. E as batatas concedidas ao "puro" não serão passíveis de serem retomadas, pois são elas a simples consciência do que um dia alguém declarou sobre, apesar de poderem, a qualquer momento, fazer-nos mal nessa batalha permanente pelas batatas spencerianas, nada nem ninguém pode tornar-nos maus... E esse sempre será o maior de todos os trunfos.”