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sexta-feira, 18 de junho de 2010

EDUCAÇÃO

Segundo editorial do Globo intitulado “A Educação ensina que o crime é exceção”, a boa escola que educou os 22 alunos bem sucedidos, da mesma turma do bandido Fernandinho Beira-Mar, localizava-se na “carente Caxias dos anos 70”.
Os anos 70 foram anos de ditadura. E, num momento em que a educação oferecida hoje por nossas escolas é tão – e de certa forma legitimamente – criticada, corremos o risco de ver, através de textos desse tipo, reforçada a tese daqueles que querem associar fracassos a qualquer governo de esquerda... Tese simplista essa segundo a qual, naqueles terríveis tempos, tivemos uma educação melhor do que a de hoje...

Não sendo especialista, peço desculpas pela fragilidade dos conceitos aqui tratados, e quero deixar claro que ouso abordar o assunto apenas porque acredito que, cada um de nós, cidadãos, precisa se manifestar sempre que nossa alma se inquiete diante de temas de fundamental importância para a sociedade como um todo.
Isso é, afinal, no que deve consistir o debate dentro de uma democracia, enquanto deixar que discutam entre si apenas os especialistas seria típico das tecnocracias.

Dito isso, gostaria de registrar que acredito que a verdade seja que, ao longo da história brasileira, embora, por um lado, tenhamos tido a certeza da existência de muitos bons alunos, como certamente o foram os colegas do referido criminoso, por outro lado, nunca tivemos uma escola de excelente qualidade. O que, naturalmente, com todas as mudanças que vimos sofrendo, parece tornar-se cada vez mais difícil, algo a exigir muito mais do que vontade política e verba: provavelmente a consciência de cada cidadão quanto a sua responsabilidade como agente multiplicador de valores e formador de opinião.

Dentre alguns modelos de escola que tivemos, houve a escola tecnicista - e imagino que a escola da época da ditadura se enquadrasse nesse grupo -, que privilegiava a transmissão de conteúdos... Conteúdos muitas vezes duvidosos, diga-se de passagem, uma vez que sabemos o quanto a história nacional fora então adaptada aos interesses daqueles que detinham o poder. Conteúdos, em todas as matérias, sempre a incutir-nos a certeza de termos de buscar uma resposta única para cada pergunta... Sem falar de como, então, os elos entre as disciplinas – a Filosofia, a Psicologia e a Sociologia -, capazes de nos fornecer a importante visão de que todas as matérias constituem uma só ciência foram criminosamente abolidos de nossos currículos(* ). ( Graças a Deus, começam a ser a eles novamente incorporados. )

Opondo-se a essa escola, tivemos a escola politicista, preocupada prioritariamente com a forma de transmitir os ensinamentos e na qual a transmissão de conteúdos não passava de pretexto para a “conscientização política”.
Segundo um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos, com os quais, há muitos anos, aprendi a terminologia acima, para surpresa de todos, essa escola formava cidadãos passivos, enfraquecidos diante da certeza de sua condição submissa.
Não me lembro dos detalhes, mas, na palestra à qual assisti, esses pesquisadores mostraram que uma alternativa aos modelos educacionais falidos seria ensinar-se a partir de uma perspectiva aberta, longe das verdades absolutas. Um exemplo: o professor de matemática deveria ensinar a continha de somar ou a de subtrair tanto começando da forma tradicional, da direita para a esquerda, quanto da esquerda para a direita ( eu aprendi ali que isso era possível ); o professor de Leitura deveria ouvir as impressões de cada aluno sobre os textos lidos, tentando pincelar os pontos em comum e as divergências, evitando rotular qualquer delas de “errada”; e assim por diante...

Concordei logo com eles. Isso, aliado ao retorno das disciplinas consideradas “elos” aos currículos, certamente formaria uma nova estrutura de pensamento em criaturas mais seguras de si mesmas, uma vez que certas de que a resposta do outro, ainda que ótima, jamais seria a única resposta; certas de que boas respostas poderiam brotar de seu confiável coração, a qualquer momento e diante de qualquer situação. Sem falar que tal “método” formaria professores seguros ao ponto de, sempre que necessário fosse, pronunciarem o respeitável “não sei, vou verificar” que, por identificação – todos nós não sabemos muitas coisas -, mais segurança somaria àquela recém adquirida por seus alunos.

Dessa forma, também porque vi que muitos professores aplaudiram aquela exposição, acredito que, pouco a pouco, em uma ou outra escola, particulares e públicas, ainda que aos trancos e barrancos e quase silenciosamente, é possível que possamos estar no caminho tanto de constituirmos melhores professores quanto melhores alunos. Estruturalmente. Conscientes de serem parte de alguma coisa maior do que eles mesmos. Conscientes de pertencerem a um todo chamado humanidade, da mesma forma que passarão a perceber as disciplinas estudadas como órgãos de um mesmo organismo. Sócios no mundo do conhecimento. Cidadãos fortalecidos, capazes de, eles mesmos, empreenderem, ao longo de suas vidas, uma busca permanente pelo saber. Produzindo saber.

E essa nova consciência, que acredito em gestação, aponta para o fato de que uma boa Educação emerge da certeza de que somos todos, e não apenas os professores ou pais, responsáveis por educar – principalmente com o testemunho de nossas vidas - todas as crianças e jovens de nosso tempo...

Enquanto aguardamos que essa espécie de escola-mundo se atualize, o que observamos é que não raro a escola culpa a família por seu fracasso, e a família, por sua vez, responsabiliza a escola pelo fracasso de seus filhos, sem perceberem que o problema todo talvez esteja na teima em manter-se um modelo de escola superado. O problema talvez esteja em acreditarmos em certos modelos de avaliação que avaliam como antigamente pessoas que estão sendo submetidas a outro modelo de formação. E isso vale inclusive para o vestibular e para os concursos de ingresso a inúmeras carreiras.

Não é raro vermos pais que se consideram sucesso em suas profissões, defenderem o modelo “conteudístico” das escolas por eles freqüentadas... No entanto, talvez o fato de haverem decorado tabuadas, capitais de estados e países, e os preceitos da “Moral e Cívica”, além de haverem aprendido a decidir rapidamente entre o “s” e o “z”, o que lhes conferiu boas notas e um diploma atrás do outro, pode não haver sido o que determinou o seu futuro.
( Ora, o que os favoreceu pode haver sido o fato de haverem podido escolher sua carreira, tendo a ela se dedicado a partir de então, sempre com a proteção e a admiração de suas famílias. )

Hoje, o desafio que enfrentamos ao educarmos as novas gerações é de outra ordem... Os jovens, exigentes, desprezam a decoreba, desconfiam da importância de certos conteúdos... Conheço um rapaz que aprendeu a escrever corretamente – e bem – depois que resolveu sentar-se ao computador para escrever sobre a doença que o consumia e que era, ao mesmo tempo, medicada e ignorada pela maioria das pessoas a sua volta. O word e as leituras que foi fazendo em torno da moléstia acabaram lhe ensinando mais sobre ortografia e redação do que todos os anos que passara na escola. O que pode ser conferido à vista dos textos por ele produzidos então.

Assim é que acredito que, se quisermos uma boa Educação para nossos jovens em um futuro próximo, temos de nos convencer de que educar passa por sabermos lidar com o que de mais humano haja em cada um de nós, em cada um de nossos alunos. E isso só ser torna possível quando entramos profundamente em contato com nós mesmos, abrindo mão de qualquer tipo de hipocrisia.
Professores e pais e cidadãos de um modo geral, todos nós, ao nos aprimorarmos como pessoas, buscando nossos interesses mais profundos e dando o nosso melhor em função da construção de uma sociedade mais verdadeira, plural e justa, contribuiremos para isso. Conscientes de que educamos, inclusive os professores, muito mais com o que somos do que com aquilo que propositalmente desejemos transmitir.

“Faça o que eu digo e não faça o que eu faço” é a base da revolta de alguns jovens das classes privilegiadas, que acabam por direcionar a toda a sociedade a decepção em relação a seus próprios pais.
E mais importante: “servir de exemplo” também não funciona se aquilo que se quer oferecer como modelo não passar de máscara, de pura hipocrisia.

Enfim, tudo isso para dizer que, se a escola de Caxias ajudou a manter longe do crime os colegas do terrível criminoso Fernandinho Beira-Mar, essa outra escola-mundo de que falamos e na qual a sociedade precisa acreditar, se existisse então, talvez houvesse evitado também o descaminho do próprio bandido. E de outros criminosos mais, inclusive daqueles advindos das classes superiores. Simplesmente porque, nessa escola viva, para além dos muros da instituição, os melhores valores humanos estariam em pauta. Todos os dias.

(*) No editorial do BCEN, Boletim do Centro Educacional de Niterói, da Fundação Brasileira de Educação, referente ao bimestre agosto/setembro de 1984, eu já valorizava:

“A consciência de que fazemos parte de um todo é importante. E talvez alguns educadores não a tenham justamente porque não lhes permitiram desenvolver essa visão ainda na escola, quando foi formada a sua estrutura de pensamento.
A Filosofia, mãe de todas as ciências, vai mostrar ao aluno que a Física, a Química, a Matemática e a Biologia estão há muito tempo aliadas na busca de respostas humanas, do sentido da vida, do princípio e fim das coisas. A Psicologia trará maior compreensão quanto à consciência surgida na evolução da vida. E a Sociologia completará o quadro ligando o homem ao processo social, à Geografia e à História.
É preciso que [...] permitamos esses conhecimentos a nós mesmos e ao aluno. É necessário que ele possa se ver dentro de um bloco compacto de conhecimentos e não mais no esfacelado a que está acostumado [..] É importante que tenha, desde cedo, oportunidade de ver que as angústias – que o fazem sentir-se diferente dos outros – foram as dúvidas dos grandes pensadores da humanidade”

O Centro Educacional de Niterói, naquela época, mantinha a Filosofia em seu currículo e o aluno do segundo grau, ali, já tinha, no contato com Saussure, a oportunidade de descobrir a Língua como ciência.
Lembro-me de um aluno, na aula de Literatura, encantado com a máxima dialética do linguista francês: "Então, a Língua muda porque não muda, professora?"
Às vezes, me pergunto em quantos aspectos de sua vida aquele aluno aproveitou o conceito, que eu mesma volta e meia evoco.