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domingo, 20 de junho de 2010

O SOLISTA

“O Solista” me lembra de alguma maneira “O Pescador de Ilusões”.
Tanto em um quanto em outro filme, vemos, dentre outros personagens, um homem em busca de si mesmo, de um sentido para sua vida, para seu trabalho...

Inclusive, da mesma forma que “O Pescador...” ( vide comentário no blog ), “O Solista” poderia ser analisado a partir da psicologia analítica de Jung. Isso, observando-se o trajeto do personagem-jornalista enquanto vai juntando suas muitas facetas... E talvez possamos dizer que ele acaba vislumbrando o “graal” a partir do momento em que valoriza a sensibilidade/sabedoria do “bobo-louco-músico” que cruza seu caminho... O que acaba por lhe permitir uma reaproximação de sua mulher e/ou de sua “anima”.

Fora isso, não podemos deixar de tecer alguns comentários em vista do músico possivelmente esquizofrênico e de seu relacionamento com o jornalista, que acaba por se tornar seu amigo.

Bem, tudo começa quando, sensibilizado depois de um acidente e determinado a encontrar assunto mais humano para suas crônicas, o jornalista sai atento pelas ruas e se depara com o homem de falas algo desconexas, tocando soberbamente um violino quebrado e dizendo-se ex-aluno de uma conhecida escola de música...

No decorrer da história, ficamos sabendo que o violonista houvera abandonado o conservatório por causa de um surto psicótico...

Acontece que, superficialmente falando, a esquizofrenia se caracteriza por espécie de fissura na personalidade de alguém, de onde emergem vozes, delírios e alucinações...

Em uma sociedade marcada há mais de dois séculos pela medicalização, que, nas últimas décadas, através da propaganda – inclusive dentro dos consultórios médicos -, transformou o indivíduo em consumidor de remédios como de qualquer outro produto, imaginar que se pense em medicar alguém que ouve vozes pode parecer bastante natural, não é?

No entanto, parece que o filme acena para uma nova mentalidade que vem se formando em oposição à cultura do remédio para tudo, desde as pílulas para as pequenas e grandes tristezas, passando pelas vitaminas, pelo emagrecedor e pelo revigorante sexual...
E dentro dessa nova mentalidade, que engatinha – mas já tenta se por de pé -, é principalmente questionado o uso a três por dois de remédios para as afecções da mente – alma, emoção...

Afinal, o que é a Loucura?

Desde os primórdios da História, a sociedade tenta calar seus “loucos” de alguma maneira, jogando-os em navios a percorrerem sem destino os mares sem fim, trancafiando-os dentro de manicômios ou simplesmente, como fazem inclusive muitos daqueles que recentemente se posicionaram a favor da desmanicomialização, abandonando-os, fornecendo-lhes muitas vezes como tratamento uma única opção: o re-mé-di-o.

Do que temos medo?

De que o louco nos fale de nossa própria loucura?

De que seu lado rústico nos fale daquilo que temos por baixo de nossos trajes de gala?

De que sua sabedoria-tola enfraqueça nossas certezas?

No filme, vemos a insistência do jornalista junto ao responsável pelo abrigo para o qual encaminhara o músico - a quem estava decidido a ajudar -, no sentido de que lhe fossem dados remédios. Sugeriu inclusive ao rapaz, em vista de sua cuidadosa negativa e diante das leis locais, que imaginassem uma falsa denúncia de que o moço representasse “risco para si mesmo e para os demais”, a fim de que, internado, recebesse fármacos que, segundo supunha, colocariam-no em condições de escolher melhor o que queria para sua vida.

Mas quem parecia querer alguma coisa para o músico era o jornalista... Possivelmente não de forma consciente e provavelmente bastante autoenganado, queria ver “progressos” suficientes no comportamento daquele que virara espécie de musa para sua coluna no jornal... Queria mais assunto... Talvez ele quisesse história para o livro que acabaram convidando-o a escrever sobre o personagem centro do sucesso de seus últimos textos...

E é quando tenta forçar o músico a aceitar rótulos ( esquizofrênico ) e a ser tutelado pela irmã que vê Nathaniel Anthony Ayers se tornar agressivo pela primeira vez.

Nesse momento, chegamos a pensar que o jornalista irá abandonar o músico ou que irá aproveitar a oportunidade para, como queria de início, interná-lo... Mas é a reação daquele homem em defesa da vida que escolhera viver e o enlevo espiritual no qual o músico parecia transportado sempre que ouvia ou tocava uma bela música que, além da sacudida que lhe dá a mulher ao atirar-lhe ao rosto a possibilidade de ele estar “explorando o louco”, parecem transportar o jornalista Steve Lopez, pela primeira vez na vida, para o mais fundo de si mesmo.

O mais bonito nesse filme, que, dentre outras coisas, coloca em evidência uma Los Angeles com mais de 90000 sem-tetos ( destacando sensivelmente o fato de, apesar de toda a aridez de suas vidas, eles parecerem conservar alguma alegria de viver ) é perceber, ao final, a amizade entre aquelas duas pessoas – o músico e o jornalista – baseada na aceitação de suas diferenças mais gritantes, que se tornaram pequenas na descoberta da humanidade que tinham em comum...

Sem remédio, o músico continua vivendo a vida na qual parece encontrar algum equilíbrio, principalmente depois de constatar que seu novo amigo talvez fosse mais sincero do que, a princípio, qualquer um dos dois pudesse suspeitar.

Após OUVIR seu próprio coração, o jornalista convence-se de que o músico, seu amigo, como ele mesmo, merece respeito e tem o direito de escolher como viver os seus dias.

Em “Elogio da Loucura”, Erasmo de Rotterdam nada mais faz do que traçar um paralelo entre a Loucura e a Vaidade.
Machado de Assis, em texto intitulado "Elogio da Vaidade", faz uma paródia do trabalho do filósofo que não deixa dúvida quanto a isso.

E Michel Foucault, em “História da Loucura”, premia o leitor com trechos assim, a sapecarem a mesma senhora:

“Nesta adesão imaginária a si mesmo, o homem faz surgir sua loucura como uma miragem. O símbolo da loucura será doravante este espelho que, nada refletindo de real, refletiria secretamente, para aquele que nele se contempla, o sonho de sua presunção. A loucura não diz tanto respeito à verdade e ao mundo quanto ao homem e à verdade de si mesmo que ele acredita distinguir.”

Quantos homens bem sucedidos colocam todos os dias em risco a si mesmos e a toda a sociedade em suas ganância e vaidade sem limites?
Eles não são internados. E, se tomam remédios, fazem-no exclusivamente segundo a própria vontade, provavelmente como mais um dos artifícios utilizados para calar as VOZES de suas consciências... Talvez fosse melhor se simplesmente ouvissem vozes.

Obs. A música e o novo amigo certamente fazem muito por Nathaniel, que passa a tocar vários instrumentos e acaba por aceitar morar novamente sob um teto...

Histórias como essa nos levam a valorizar cada vez mais aquelas instituições que disponibilizam cursos de Música, Esporte, Dança, Arte etc. para aqueles que muitas vezes sequer conhecem o próprio potencial.