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quinta-feira, 3 de junho de 2010

"NÓS QUE NOS AMÁVAMOS TANTO"

A mulher de Nicola, temendo pelo emprego do marido, diante da reação dos "hipócritas" aos seus comentários apaixonados sobre o filme “Ladrões de Bicicleta”, que acaba de ser exibido no estabelecimento de ensino no qual ele lecionava:

“Tem de escolher, Nicola: os ideais ou a família...”

“Mas por quê?” – devolve ele, e escuta:

“Por que o mundo é assim!”

Bem intencionado, ele arremata:

“Mas, se é assim, precisamos mudá-lo!”


Gianni, relutando em trocar de caminho, escuta do milionário que virá a ser seu sogro e sócio em negócios escusos:

“Lembre-se de que quem vence a batalha contra a consciência vence a guerra da existência.”

Infelizmente, parece que desde sempre a família foi usada como argumento - contraditoriamente altruísta - para convencer muitos a abrirem mão daquilo em que acreditavam...
Por que não dizer a Nicola: “Isso, Nicola, já que tem um filho, não se pode deixar seduzir pelos valores daqueles que pensam que um ser humano tem apenas necessidades materiais a serem atendidas. E o espírito? E o sentimento de se pertencer a algo maior, seja ele Deus ou o simples processo histórico?”
Ou simplesmente: “ Isso, Nicola, o certo é que a verdadeira felicidade só será de um homem quando for de todos os homens... E esse dia pode estar longe, mas seu filho precisa saber que você já se colocou a caminho”...

Em “Nós que nos amávamos tanto”, obra prima de Ettore Scola, três amigos idealistas, decididos a participarem da construção de um mundo melhor, são testados pela vida, no período de 30 – 45 a 75 – anos da História da Itália.

Belíssimo filme!, pede atenção ao personagem Antonio, que, apesar de algumas atitudes questionáveis, parece ser aquele que se mantém até o fim mais motivado. Vide como tenta conscientizar os pais à porta da escola do filho, uma das últimas cenas do filme. É como se ele - dentre os três, o menos ambicioso - nos acenasse para a importância das pequenas atitudes diárias, a operarem mudanças primeiro em nossas próprias vidas.

O filme - atual? - faz menção ainda a: redes de televisão que manipulam a opinião pública; livros grandiosos recusados por não atenderem aos interesses comerciais das editoras; equívocos impostos como verdades ao interpetrar-se uma obra de arte; inúmeros crimes cometidos em nome da ganância e do egoísmo... O filme retrata esse mesmo homem de hoje, que conhecemos bem, sempre interessado em dominar o espaço e cada vez mais convencido de que, por tabela, pode também dominar o tempo...

Prazeroso constatarmos ao final: Gianni, que enriquece pelos piores meios, dá mostras da consciência da inutilidade de toda sua vida. Pena que os protagonistas atuais da vida real, que sabemos haver percorrido caminhos semelhantes, parecem cada vez mais abraçados ao autoengano, decididos a não darem o "braço a torcer"...

De qualquer forma, é para Gianni que parece dirigida a frase em dado momento pronunciada por Nicola: “Viver como se gosta custa pouco, pois se paga com uma coisa que não existe: a felicidade”...
Talvez pensar que a felicidade não exista sirva realmente de consolo àqueles cujas escolhas os afastem cada vez mais da única felicidade possível, que é a da comunhão do homem com aquilo que é sua própria essência. Escondidos de si mesmos, é certo que os muitos Giannis da atualidade precisam primeiro ter coragem de olhar por trás de suas muitas máscaras para depois poderem vislumbrar o que seria a mais simples e verdadeira alegria possível a um ser humano.

“Achávamos que mudaríamos o mundo, mas foi ele que nos fez mudar”, é uma das últimas tiradas de Nicola, o intelectual dos três.

Pois foi resistindo às mudanças, para não abrir mão daquilo que realmente importava - seu ideal e o amor da mulher que, em momentos diferentes e para seu sofrimento, acabou se envolvendo com seus dois amigos -, que Antonio tornou-se ainda mais ele mesmo...
De qualquer forma, "não mudar" talvez exija bastante flexibilidade e, por outro lado, o mundo só transforma negativamente aqueles que abram mão da própria vida em função de algo que, no fundo, no fundo, nunca os convenceu.

A humanidade, por sua vez, parece-nos engessada, ainda que isoladamente cada homem venha a modificar-se de uma ou outra maneira.
Gosto de dizer que mudam os cenários, os panos de fundo, para o desfilar sem fim, nos palcos da vida, de personagens a repetirem os mesmos conflitos humanos, inclusive os mesmos movimentos de "mudança". A humanidade permanece a mesma, cuspindo sem parar homens aturdidos entre o impulso para o seu melhor e as tentações em nome da “família”, da “vitória sobre a guerra da existência”... Permanece a mesma, sem saber se acredita ou não nessa alguma coisa pulsante chamada coração que, em algum instante, até mesmo pelo pior dentre os homens, pode ser sentido como o grande guardador de todos os segredos, bombeador de sangue, sentimentos e Consciência...

Enfim, à imagem do personagem do filme “O Feitiço do Tempo” ( vide artigo “’O Feitiço do Tempo’, em Míriam Leitão” ), a humanidade como um todo parece presa nessa repetição sem fim de personagens Giannis, Nicolas e Antonios, bem como de outros que, ao contrário destes, sequer chegam a vislumbrar a diversidade das escolhas possíveis... No entanto, talvez estejamos caminhando em espiral, ao invés de em círculos, como, à primeira vista, possamos pensar... E se, de três bem intencionados em cada ponto da História, acabar por sobrar um Antonio, disposto, ainda que aos “trancos e barrancos”, a não desistir de seu trabalho de formiguinha ( parodiando Saussure: o homem muda - no melhor sentido - porque não muda ), certo será que um belo dia ter-se-á a massa crítica necessária a mais um grande salto em nossa evolução.

Obs. Costumo associar as três buscas humanas: o autoconhecimento - através ou não da psicanálise; a espiritualidade e a luta política por um mundo mais justo e melhor para todos. Uma parece levar à outra naturalmente.
Por incrível que a alguns possa parecer, consciência política e Consciência espiritual talvez tenham mais pontos em comum do que pensamos.
Em relação a "A Juíza", ouvi interpretações as mais interessantes: uns dizem haver compreendido a Consciência, voz narradora da história, como consciência social, política mesmo; outros, perceberam nela o transcendental.
Em ambos os casos, meus leitores registraram que uma ou outra iam se atualizando à medida em que o personagem se aprofundava na busca de si mesmo.