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segunda-feira, 12 de abril de 2010

Respeitabilidade e Autoengano ( texto enviado para publicação - e publicado - no Boletim da UFMG: http://www.ufmg.br/online/arquivos/015104.shtml )

Se existe um aspecto do ser humano que sempre me intrigou é sua capacidade de se convencer de que é válida qualquer ação praticada, por mais vil que seja em si mesma, em nome de uma tal “respeitabilidade” social. Tendo a pensar inclusive que aí esteja o cerne de toda nossa hipocrisia.

Em nossa sociedade, temos uma ideia bastante interessante do que sejam homens de respeito. Para nós, de modo geral, eles devem “parecer” honestos. Por outro lado, precisam dispor de alguns signos tais como bons carros, boas casas, boas roupas, jóias, viagens etc. Eles devem “parecer” honestos e, de qualquer forma, ocupar um bom cargo, ter boa aparência, apresentar títulos, manter relacionamento com pessoas influentes...

Exigimos que apenas “pareçam” honestos porque, infelizmente, não há como negar que muitos daqueles dentre os mais respeitados homens por nós conhecidos sejam capazes – ironicamente, dispostos a manterem tal respeito a qualquer preço - de expedientes silenciados até para si mesmos. E esse talvez seja um dos mais terríveis pactos sociais: se todos agem da mesma forma, calando-se, uns são álibis dos outros. E em um jogo no qual a verdade é perdida de vista, a mentira toma seu lugar e vivemos enganando e autoenganados.

Segundo Eduardo Giannetti, em “Autoengano”:

“Na mente de cada indivíduo há coisas que ele prefere que estranhos não saibam e, mais perto do centro, coisas que os íntimos não devem saber. Mas há também coisas que ele próprio – o centro alerta que determina o que os outros devem ou não saber – prefere não saber. [...]
A rendição da guarda – o eventual colapso dessa resistência protetora do centro – implicaria uma dupla perda: a perda da respeitabilidade perante os que estão fora e a perda do respeito perante si mesmo, ou seja, daquela sensação interior de que se é ‘honesto e respeitável’.”

Quem não ouviu falar de altos funcionários públicos que, ao cometerem um pequeno ( imagine se grande... ) engano - mera perda de um prazo, por exemplo - são capazes de mandar instaurar processos em torno de seus subordinados, à guisa de transferir-lhes suas culpas, única e exclusivamente porque não podem correr o risco de perderem sua res-pei-ta-bi-li-da-de?
E por aí vai: o médico que percebe seu engano ao pronunciar um diagnóstico - e não volta atrás; o professor que responde errado a uma pergunta por medo de simplesmente dizer “não sei, vou verificar”; o jornalista que informa tendenciosamente; o homem que mata para calar aquele que conheça um resvalo seu do passado... Todos eles, do mais inocente ao assassino, já no segundo seguinte esquecidos do significado de suas ações: respeitados e completamente autoenganados.

Exatamente como cada um desses nossos políticos pegos com a mão na botija e que apenas se dão conta do que fizeram ao verem a própria imagem na televisão. Em seu dia a dia anterior ao flagrante é possível que apenas se sentissem usufruindo de benefícios e facilitações “inerentes” ao cargo pelo qual se empenharam de várias maneiras. E sua indignação, que não compreendemos, talvez esteja associada à certeza de saberem que tantos outros de tantos outros partidos estejam agindo da mesma forma, tanto quanto ele: au-to-en-ga-na-dos.

Da mesma forma deve ocorrer com aqueles empresários que, completamente esquecidos de que existe vida humana para além das paredes de suas indústrias, não hesitam em “externalizar” perigos ao meio ambiente, desde que isso lhes signifique lucrar. Lucrar e ser cada vez mais res-pei-ta-dos. Ainda que autoenganados.

Assim é que toda vez que a determinado grupo ou academia repleta de homens “respeitáveis” é chegado alguém disposto a revelar-se, revelando por tabela cada um dos outros ali presentes, podemos observar, em maior ou menor grau, dependendo do nível de comprometimento e de dependência de cada um em relação à pretensa aura de respeitabilidade, uma reação de rejeição à nova presença.
Tentarão de várias formas desmerecê-lo, diminuí-lo, enfraquecê-lo, desmoralizá-lo. Na tentativa de se preservarem, tentarão transferir para ele as mazelas dentro de si mesmos caladas. E até acreditarão nos argumentos erigidos como sustentação de sua resistência ao apelo – sempre forte – que lhes chegue da verdade. Simplesmente, autoenganados.

A título de exemplo, imaginemos que a um clube frequentado pela nossa classe média de repente filie-se membro em tal busca de valores que não se canse de materializar em sonoras palavras a hipocrisia da classe à qual pertence. Enumerando seus crimes, tal como os impostos, sonegados - da compra de objetos contrabandeados ou pirateados ao tráfico de influência e à corrupção, em meio à prática dos quais luta por leis mais duras para os criminosos do andar de baixo...
Não há dúvida de que será muito difícil a aceitação desse novo membro...
A não ser que outros ali sejam de repente tocados pela magia do oráculo de Apolo: “Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”.

Enfim, como afirma Giannetti, “se a vida errada e irrefletida é a conseqüência inevitável do autodesconhecimento satisfeito consigo mesmo, a vida ética pressupõe o empenho e a capacidade do homem de buscar de forma contínua e incessante a verdade sobre si.”
Conhecer a nós mesmos, empenhados num permanente autoaprimoramento - única maneira de nos respeitarmos e de sermos legitimamente respeitados, evitando a experiência registrada pelo poeta: “Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me”.

OBS. 1) se quiser, na próxima página do blog, poderá ler este texto antes de haver sido adaptado - encurtado - para o Boletim. Leia, então, também: "Sobre o texto anterior ( eu acredito em utopias )".
2) "revelar-se" é dizer o que vê, sente e pensa; é dar-se o direito de ser transparente; é se recusar a participar do "jogo", declarando-se em busca dos melhores valores humanos.