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terça-feira, 16 de março de 2010

Pobreza é SINTOMA

Estou assustada.
Sob o título “Pobreza não é virtude”, o artigo do administrador de empresas João Luiz Mauad, publicado no Globo de 11 de março último, parece destilar um rancor tal pela classe subalterna que eu sequer imaginava existir.
Que alguns de nossas elites considerem, de certa forma inconscientemente, o trabalhador pobre mero instrumento ou ferramenta de trabalho, mais ou menos como nos ensina Marilena Chauí, não é surpresa alguma... Porém, que por ele experimentem a espécie de ressentimento ( preconceituoso? ) manifesto por Mauad, deixou-me desconcertada.
Logo de cara, de qualquer forma, contraponho à afirmação-título do articulista a de que pobreza, não sendo virtude, certamente é sintoma de uma sociedade nada virtuosa; produto do sistema mesmo que a despreza.

Uma prima querida tem, na parede de sua sala, um belo quadro, em harmonia com cada uma das peças da mobília e da decoração étnica. Coloridas, vemos impressas, na tela discretamente emoldurada, nada menos do que as mãos de cada um dos operários que ergueram as paredes de sua casa.
Linda homenagem àqueles que certamente jamais desfrutarão de um lugar como aquele para criar seus filhos. Mas que nem por isso deixaram de fazer o seu trabalho, debaixo de sol e de chuva, da melhor maneira possível.
Exemplo de trabalho duro e honesto melhor do que o desses homens será difícil apontar. No entanto, eles nunca enriquecem... Contradizendo o artigo em tela, segundo o qual existe uma tendência sociológica para o “pobrismo” e o “vitimismo” que, dentre outros males, induziria os mais pobres “à ilusão assistencialista”, afastando-os do trabalho árduo – caminho certo para a confecção de milhões, segundo Mauad.

Não sei, mas talvez o senhor João Luiz Mauad chame “duro” o trabalho de administrar o trabalho alheio, as ferramentas humanas... Não sei se tão duro quanto o do operário, mas certamente mais fácil de ser revertido em cifras, ele é... De qualquer maneira, fica a pergunta: como enriquecer sendo apenas ferramenta? E outras: enriquecer, no sentido dos "milhões" de que fala Mauad, deveria mesmo ser objetivo de todos? Não seria essa crença, mola de alguns, a impedir que todos tenham o direito, como fruto de seu trabalho, a uma vida simplesmente confortável e tranquila?

Quanto ao estudo, sem falar no tempo nenhum para tal empreendimento na vida da maioria dos trabalhadores honestos, eu gostaria muito de saber o que seria dos donos das "ferramentas humanas", se todos pudessem realmente estudar e escolher uma profissão que não lhes exigisse ganhar o pão literalmente com o suor de seus rostos, como o fazem os operários da construção civil aqui já mencionados.
Quem construiria nossas confortáveis casas, para que pudessem abrigar as escrivaninhas, os computadores e os livros de nossos filhos?
E, de modo geral, quem iria nos servir em casa, no trabalho, na rua? E por salários suficientes apenas para manter-se de pé...
Por outro lado, todo o estudo que tanto valorizamos, e que de pós em pós não acaba mais, não estaria virando espécie de mercadoria?
Afinal, quantas seriam as dissertações e teses completamente inúteis e que custaram bolsas ao Estado durante sua confecção? E pior: quantas seriam aquelas cuja única utilidade real acaba sendo aumentar a vaidade e o salário de profissionais da classe média e média alta? Pois a maioria delas tem seu ponto final diante da banca que concede o título ao mestre ou ao doutor, e, ato contínuo, lança às traças os inúteis calhamaços de papel...
Isso, sem falarmos que, conforme nos lembra a socióloga Maria Lúcia Rodrigues Maia, alguns daqueles profissionais que desde sempre cursaram as mais difíceis e demoradas faculdades, além dos cursos de especialização, os nossos médicos, estão a cada dia que passa tendo seu trabalho menos valorizado e sendo por ele pior remunerados...

Assim, além de esclarecermos que talvez o estudo e o trabalho duro não estejam necessária e diretamente associados ao enriquecimento, parece que conseguimos registrar que nosso pobre trabalha, sim, duro; e que, se não estuda ( estamos falando do estudo formal, uma vez que a experiência diária nas fabulosas construções – aproveitando o exemplo dado - de que são capazes é mais do que pós-doutorado na área ) tanto quanto nós, nem por isso deixa de ser indispensável à manutenção de nossa vida em sociedade. Enquanto muitos daqueles que estudam mais do que o suficiente fazem isso em benefício exclusivo de si mesmos. ( Claro que não incluo aqui os pesquisadores que realmente fizeram/fazem a diferença com seu mergulho nos livros e na vida – estes geralmente nada preocupados com títulos -; e que se dedicam por inteiro à descoberta de respostas que venham a melhorar a qualidade de vida da população como um todo. )

Bem, mas voltemos ao nosso árido assunto.
Parece que o “q” da questão é o tipo de trabalho que é bem remunerado, respeitado e valorizado por nossa sociedade; e aquele que é por ela apenas usado e explorado.
Dentro do primeiro grupo, encontramos aqueles profissionais hipervalorizados única e exclusivamente porque produzem capital em si mesmos ( talvez nosso sistema remunere o capital e não o trabalho... ): são ferramentas muito lucrativas para as grandes empresas que as manejam, ainda que seus profissionais não hajam frequentado durante muitos anos a escola. Dentre eles: alguns jogadores de futebol, artistas, cantores, modelos e apresentadores de programas populares...
Com todo o respeito que tais profissionais em si mesmos merecem, registre-se a ironia que é o fato de seus empresários deverem seu enriquecimento ( assim como o sucesso de outros negócios ), em grande parte, ao público constituído justamente pelos trabalhadores pobres, tratados ( os pobres e aquilo que é produzido em torno de sua cultura ) por Mauad pelos neologismos ( irônicos e de menosprezo? ) “pobrismo” e “pobrista”.

Quanto ao elogio dirigido no artigo em questão às sociedades e pessoas que entendem a riqueza como “prova concreta da graça de Deus”, eu lembraria que acreditar nisso talvez possa ser em algum momento bastante perigoso... Não é raro ouvirmos alguém proclamar-se agraciado com riquezas ( de várias fontes, inclusive doações ), porque Deus o reconheceu disso merecedor. E acreditar-se especialmente merecedor da graça Divina certamente deve promover um movimento de elevação da "autoestima" tal que, para o agraciado, os limites entre o certo e o errado correm o risco de se diluírem... Afinal, se é protegido de Deus, o que poderia contra ele a lei dos impuros homens?
Já em relação à afirmação quanto à excelência profissional ser privilégio destes seguros do amor de Deus por eles mesmos - que se sentiriam à vontade para buscar o prêmio do enriquecimento, não posso deixar de frisar que muitos artistas, escritores e cientistas dedicaram suas vidas ao trabalho, tendo como único pagamento a gratificação do trabalho em si mesmo. E foram felizes. E os frutos de seus projetos, ainda que indiretamente, acabaram por beneficiar a todos.

Enfim, o texto do senhor Mauad, ao desqualificar a tese da seletividade punitiva ( batizando-a de “vitimismo” ) - tese essa segundo a qual alguns em nossa sociedade seriam escolhidos previamente para encarnarem o papel de únicos criminosos -, não nos deixa alternativa a não ser enumerar aqui, baseados na dissertação de mestrado – em vias de publicação - de Flávia Rodrigues Maia, os crimes possívelmente cometidos por muitos daqueles que, em “Pobreza não é virtude”, são tomados como os que enriquecem licitamente e através de muito trabalho.

Em seu trabalho intitulado “Crime Organizado – Sob a ótica da Criminologia Crítica”, Flávia cita Alessandro Baratta, pai da Criminologia Crítica, segundo o qual “o comportamento socialmente negativo da classe dominada seria uma resposta inadequada, do ponto de vista político, às contradições inerentes às relações de produção capitalista. Já o comportamento socialmente negativo da classe dominante, fruto da relação funcional que intercorre entre processos legais e ilegais da acumulação e da circulação do capital, e entre estes processos e a esfera política.”

Parênteses: Sem que precisemos relembrar o que nesse blog já foi dito ( vide “O Menino do Pijama Listrado” ) sobre a semente da destruição desse sistema desumano sob o qual vivemos já estar, infelizmente de forma assustadora, em fase de germinação – mesmo não sendo a semente idealizada por Marx –; e sem precisarmos lembrar os crimes de desvio de verbas da saúde e da educação, que, conforme mencionado em “A Juíza”, acabam sendo crimes de genocídio - aqueles crimes mesmo que, dentre outros males, acabam por “armar” os criminosos pobres; segue a lista dos crimes cotidianamente “esquecidos” por todos . Pois, ao contrário do que leva a crer o texto de Mauad, os crimes cometidos no andar debaixo são muitíssimo atacados, inclusive pelos veículos de informação. Como também o são, por uma ou outra razão – infelizmente, às vezes apenas política -, os crimes cometidos pelos políticos. Enquanto os crimes que listamos a seguir, ao lado daqueles cometidos pelas grandes corporações - enumerados no documentário “The Corporation” -, em sua capa de legalidade ou protegidos pelo "todos agem assim", são, estes sim, completamente “perdoados”.

A lista - adaptada ( e certamente não completa ): compra de objetos contrabandeados; sonegação de impostos; xerocópia de livros; violação de correspondência; furto de energia elétrica ( e de água ); uso de drogas ilícitas; uso de drogas lícitas sem receita médica; permissão ao filho menor para consumir bebidas alcoólicas; emprestar o carro ao filho sem carteira; passar escrituras abaixo do preço do imóvel vendido/comprado; dirigir embriagado ou sem habilitação ou em alta velocidade; injúria – sutil ou declarada; ameaça – sutil ou declarada; lesão corporal dolosa ou culposa; sonegar informação ou informar tendenciosamente ( modalidade de censura? ); corrupção ativa; abandono material; apropriação de coisa achada; apropriação indébita; aborto; porte ilegal de armas; falso testemunho; assédio moral; assédio sexual; jogos ilícitos; apresentar documento falso ou adulterado com o objetivo de pagar metade do valor de qualquer ingresso ( estelionato, falsidade ideológica ); reprodução sem autorização de vídeos e CDs; utilização de programas pirateados em computadores; uso de informações privilegiadas; tráfico de influência.

Talvez Mauad não haja percebido que apenas todos juntos construiremos um mundo melhor... Talvez ele não haja despertado para o fato flagrante de que esse mundo melhor não brotará apenas de ações ou de teorias, quaisquer que sejam... Pois é dentro do coração de cada um de nós, é da consciência espiritual ( científica - vide a Física Quântica ) de sermos um com cada outro ser humano que nasce a certeza de que só tem valor aquilo que façamos - cada um em seu cantinho, seja ele uma empresa, uma obra ou um teclado de computador - em busca de uma sociedade menos hipócrita, mais justa e acolhedora. Para todos.
E digo isso porque, ao final da leitura de "Pobreza não é virtude", a impressão que nos fica é de “apartheid”, enquanto o articulista parece deveras acreditar que não haveria, após a queda do muro de Berlim, qualquer lugar para a dita “luta de classes”, afirmando serem "abstrações" conceitos como “desigualdade”, “ sistema injusto” e “neoliberalismo”...

O artigo "Pobreza não é virtude" é documento importante de que essa luta e esses conceitos não só existem, como acabaram por se materializar em letras de forma.