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sexta-feira, 15 de março de 2013

AMOR

Por que entendemos como amor o gesto do velho que mata a companheira debilitada e a caminho do desenlace natural, entregando-se depois à própria míngua?

 
Provavelmente porque tudo o que vemos interpretamos com olhos neoliberais viciados pela propaganda da beleza, da juventude eterna, da produtividade capitalista, da ilusão da vitória sobre a morte... E, dessa perspectiva, pode parecer heróico abreviar-se o período em que a consciência da morte se agudiza. Porque, por incrível que possa parecer, a morte, magicamente, livra a todos da própria morte.

 
Exatamente como ficamos sabendo ao ler “A morte de Ivan Ilitch”, de Tolstói. Ao fim de sua longa agonia, Ilitch diz para si mesmo:

 
“A morte está acabada. Não existe mais”

 
De qualquer forma, “Amor” é um filme bonito.

 
Importante testemunhar a realidade daquilo que somos: simples pontes para os que vêm depois: os descendentes...; os alunos, que todos temos, sejamos professores, ou não... A melhor lição dada, pelo casal de músicos, ao jovem ex-aluno, com certeza foi deixá-lo entrar em sua casa, e testemunhar de perto o quanto iam ali, pouco a pouco, se confundindo com o livro na prateleira, o piano mudo, o quadro empoeirado...

 
A verdade é que somos mesmo como as formiguinhas que, afogadas em uma poça d’agua, acabam por servir de caminho mais seguro para as que vêm atrás...

 
Pontes.

 
Como dizia Teilhard de Chardin, a humanidade nada mais é do que uma imensa “esteira de existências esmagadas”...

 
E “Amor” nos leva a pensar...

 
Por que fazemos tanta questão de fugir da verdade?

 
Por que confundimos com perda de dignidade a velhice e o próprio sofrimento das doenças limitantes que a acompanham?

 
Será por conta desta mesma confusão que nossa sociedade ainda exclui todos os portadores de qualquer tipo de deficiência?

 
Não parece ser outra a confusão que, no filme em tela, logo se lança sobre o espectador... Afinal, o título “Amor” nos induz a compreender como romântico o gesto do marido que, não sendo capaz de aceitar seus próprios limites(o pedido de socorro lhe vem inclusive em forma de pesadelo), e não admitindo que a esposa (Anne) fosse cuidada por profissionais, da maneira adequada, acaba por antecipar o fim de sua história.

 
Infelizmente, não são poucos (vide a filha de Anne e uma das enfermeiras a princípio contratadas pelo velho) os incapazes de “cuidar” nessa nossa sociedade “big brother” que vive do individualismo, da exclusão, do lucro, da ambição, da competição, do descarte, da ilusão; e na qual cada um parece viver no incrível autoengano de que seu dia D possa ser infinitamente adiado...

 
Dessa forma, não é difícil compreender que o medo de vir a não dar conta dos cuidados com a companheira, e, depois, de vir a cair na mesma situação de dependência "assustadora" em que a mulher mergulhara possa haver movido o músico em suas últimas decisões. Quem sabe se refletisse um pouco mais, ou se estivesse mais descansado, as coisas se encaminhassem de outra maneira...

 
Pois a verdade é que morreremos todos.

 
A verdade é que o avançar do tempo sempre nos premiará com algum tipo de deficiência, de limitação.

 
E nossa decadência deve servir, sim (e esse serviço prestado por cada velho decrépito não tem salário que pague, além de, ao contrário do que propagandeiam, dignificar o fim de qualquer história), enquanto dure, para que nossos próximos – filhos, netos, amigos, cônjuges, vizinhos, cuidadores - possam mirar seu próprio fim. Boa oportunidade para amadurecerem e se tornarem criaturas mais humildes e humanas; mais capazes de se identificarem com cada próximo; oferecendo, enfim, seu melhor à Vida que transcende a sua própria vida.

 

Marcante, no filme:

 
Perto da morte, o velho abraça, dentro de uma colcha, a pulsante vida do pombo capturado em sua visita ao apartamento...

 
A morte do velho nos é revelada em espécie de sonho/delírio seu; quando ele pega o casaco e sai de casa, atrás da mulher ( já morta então)...

 
“Livre” da morte, a filha de Anne chega sozinha ao apartamento vazio. Sentada na cadeira de seus pais, ela olha em volta, e talvez intua que a “fila andou”. A próxima a murchar ali deverá ser ela.