Arquivo do blog

quinta-feira, 8 de abril de 2010

TRAGÉDIA, DOR E ALUCINAÇÃO COLETIVA EM NITERÓI

Hoje eu me senti dentro do cenário de um filme americano.

Estava fazendo as unhas quando os celulares das pessoas ali, inclusive o meu, começaram a tocar e, de repente, todos comentavam a aproximação de um arrastão que teria começado no Centro e se dirigia naquele momento a Icaraí.

É provável que muitos celulares hajam tocado então por todo o bairro. Pois, no mesmo instante em que decidiram fechar as portas do salão e apagar as luzes, as outras lojas em torno faziam o mesmo, enquanto as pessoas passavam correndo em todas as direções, ou formavam pequenos grupos de proteção.

Profissionais da beleza e clientes começamos a imaginar telefonemas a serem dados em busca de socorro: a polícia; o pai delegado da moça com um bebê; o irmão médico do Corpo de Bombeiros... Amigos e parentes, era preciso conferir como estavam e recomendar que não saíssem de casa...

Todo mundo novamente deve ter tido a mesma ideia, pois a maioria dos telefones ali parecia encontrar algum problema em ligar cada um de nós àqueles com os quais precisávamos muito falar... As linhas pareciam congestionadas.

Mas as recomendações chegavam: permanecer aonde estivéssemos e aguardar que a polícia desse conta da situação.

Ouvimos sirenes, vimos carros de polícia. Até helicópteros nos sobrevoaram. Só não vimos os bandidos. Só não vimos - graças a Deus - aqueles que a qualquer momento, em nossas fantasias, invadiriam os lugares e nos arrancariam aquilo que desejassem, sob o permanente risco de uma bala perdida.

De qualquer forma, o pânico, ainda que manso, pareceu se instalar... A recepcionista chegou a hesitar ao abrir a porta para uma mulher que buscava refúgio... Apesar de um ou outro profissional e de uma ou outra cliente continuarem em sua parceria, decididos a terminarem o que haviam começado, muitos simplesmente pararam, como eu, expectantes: o que estaria de fato acontecendo?

A maioria achava que o arrastão era constituído por alguns dos desabrigados pela chuva; uns poucos diziam que provavelmente bandidos profissionais se aproveitavam da situação caótica vivida pela cidade... Mas não vimos qualquer pessoa que pudesse pertencer a qualquer desses grupos...

Eu queria ir embora, mas prometera à filha e ao filho e ao irmão que não sairia de lá antes de alguma espécie de autorização formal... Ao final, acabei informando-os de que encontrara outra cliente animada a enfrentar a aventura daqueles poucos quarteirões que nos separavam de nossas casas. Como que caído do céu, encontramos o táxi que a deixou perto de casa ( quando falamos ao telefone, um pouco mais tarde, fiquei sabendo que ela ainda se deparara com a falta de luz ), e, a mim, no portão do prédio, no qual o porteiro – avisado por meu filho para que não demorasse a abri-lo – recebia os moradores que, como eu, chegavam assustados.

Pude sentir o alívio do meu filho à janela.
Minha filha - grávida, do trabalho, respirou aliviada ao telefone, a voz trêmula.
A secretária, espantada, ouvia um ou outro pedaço da história, dando mostras da surpresa em vista de algo tão inusitado para o bairro.

Confusa, aliviada por estar em casa, agradecida a todos os amigos que me haviam ligado, comecei a receber outras notícias: nada havia acontecido.

Por incrível que seja, parece que o que ocorrera fora que um grupo de moradores de uma comunidade muito atingida pelas chuvas resolvera fazer uma manifestação pública no centro da cidade. Segundo informações, queixavam-se de que todo o socorro oficial estaria voltado para a tragédia no Cubango. Sentiam-se abandonados.

Contam que, em meio ao movimento, alguns bandidos assaltaram uma loja e o boato de arrastão se espalhou pela cidade.

Por que um boato ganha tamanha proporção?

Fora os celulares, não podemos deixar de imaginar que, nesse momento, um certo sentimento de culpa paire sobre todos nós que habitamos casas seguras e podemos seguir com nossas vidas, apesar de chocados com o que as chuvas trouxeram de desgraça àqueles menos afortunados. Afinal:
1) Elegemos aqueles que governaram nossa cidade todos esses anos através dos quais as casas ora soterradas levantaram suas paredes, tijolo por tijolo;
2) Ficou bastante claro, durante as discussões sobre as cotas raciais, que é grande o número daqueles dispostos a reconhecer em cada pobre um espoliado da história. E, se espoliado é vítima, quem seriam seus algozes?

Assim, é fácil imaginar que, diante de tanto sofrimento, diante de tanta desgraça, diante dessa montanha de dor a soterrar tanta gente, talvez tenhamos hoje vivido uma espécie de alucinação coletiva.

Se não nascida do medo inconsciente de que nos venham cobrar de alguma forma aquilo de que, historicamente, talvez sejamos mesmo devedores...

Talvez vinda da surpresa por nos vermos capazes de com os mais pobres nos identificarmos: todos nós gostamos de nos sentir abrigados em nossas casas, principalmente diante de intempéries como as que têm sacudido o Rio de Janeiro...
Dessa forma, e sensibilizados por nossa própria fragilidade diante do caos a desorganizar as nossas vidas, desautomatizados, é possível que tenhamos podido finalmente ver nos fragmentos de casas que pudemos vislumbrar nos telejornais - camas, colchas, quadros, brinquedos, televisores - o quanto, no fundo, precisamos das mesmas coisas; o quanto somos todos parecidos.

Compreender que somos todos, os seres humanos, essencialmente iguais, ainda que infinitamente diferentes: primeiro passo para a construção de um mundo melhor.


Mandei ontem para os jornais a carta abaixo:


A socióloga niteroiense Maria Lúcia Rodrigues Maia não se cansa de repetir: “como nós precisamos uns dos outros!”.
E eu, que sempre imaginei compreender exatamente o que ela queria dizer, depois dessa chuva que assolou nosso estado e especialmente nossa cidade, tenho a sensação de me haver aprofundado consideravelmente no significado de suas palavras.
Como nós precisamos uns dos outros! Como nós precisamos daqueles que moram longe e algumas vezes tão mal!
Pois foi impressionante sair às ruas nesses dois dias em que a tragédia desmecanizou nossa vida de pequenos burgueses... Foi impossível não admitir que a falta dos vendedores nas lojas; dos caixas nas padarias e supermercados; dos entregadores em domicílio; dos garçons nos restaurantes; das secretárias em nossas casas – todos eles de alguma maneira atingidos pelos efeitos das enchentes - simplesmente desorganiza nosso dia a dia, obrigando-nos a registrar sua fundamental importância.

No entanto, em uma padaria de Icaraí, na qual tentavam manter o atendimento apesar de reduzidos a duas moças nos caixas e a muito menos funcionários do que de costume, enquanto eu esperava na fila para pagar meu frango assado – agradecida, como a maioria dos clientes ali, por poder contar com aquele serviço -, não pude deixar de notar a impaciência de duas ou três pessoas...
Era como se compreendessem a fila maior ou a escassez de produtos como uma agressão pessoal... Era como se achassem que todos que haviam ficado em suas casas separando a lama de algum tipo de dor tivessem faltado ao trabalho decididos a lhes fazer uma espécie de desfeita...

Chegando ao caixa, não resisti, e o que disse naquele momento à moça – que se esforçava para ser o mais prestimosa possível - repito aqui, em homenagem a todos aqueles dos quais precisamos tanto, que nos são tão úteis e que certamente ainda não tiveram o reconhecimento merecido:
“COMO NÓS PRECISAMOS DE VOCÊ! MUITO OBRIGADA POR ESTAR AQUI!”