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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Respeitabilidade e Autoengano ( este texto foi adaptado para publicação no Boletim da UFMG: http://www.ufmg.br/online/arquivos/015104.shtml )

Para Krishnamurti, “respeitabilidade é uma maldição; é um ‘mal’ que corrói a mente e o coração. [...] Ser respeitável é se sentir bem-sucedido, criar para si mesmo uma posição no mundo, construir em torno de si um muro de segurança, de autoconfiança, que vem junto com o dinheiro, o poder, o sucesso, a capacidade ou a virtude. [...]; as influências do ambiente e o peso da tradição são extremamente importantes para eles [ os respeitáveis ], pois isso esconde sua pobreza interior. Os respeitáveis estão na defensiva, assustados e desconfiados. O medo está em seus corações, portanto a raiva é sua justiça; suas virtudes e devoções são sua defesa”.

Se existe um aspecto do ser humano que sempre me intrigou é sua capacidade de se convencer de que é válida qualquer ação praticada, por mais vil que seja em si mesma, em nome de uma tal “respeitabilidade” social. Tendo a pensar inclusive que aí esteja o cerne de toda nossa hipocrisia.

Essa sociedade na qual vivemos e para cuja preservação trabalhamos tem uma ideia bastante clara do que seja um homem de respeito. Para nós, de modo geral, ele deve “parecer” honesto – virtudes (?); e deve dizer-se portador de um credo – devoções(?). Por outro lado, precisa dispor e usufruir de confortos materiais tais como bons carros, boas casas, boas roupas, joias, viagens etc. Ele deve “parecer” honesto e, de qualquer forma, ocupar um bom cargo, apresentar títulos, manter relacionamento com pessoas influentes.
Até onde sabemos, qualquer homem entre nós inspirará respeito se, além de “parecer” honesto, souber realizar negócios lucrativos e mantiver conversas de “alto” nível em ambientes sofisticados.
Obs.Também serão respeitados aqueles que, não ameaçando a ordem por um grupo estabelecida, de uma ou outra maneira, venham a lhe servir de álibi.

Dizemos que ele deva “parecer” honesto porque, infelizmente, não há como negar que muitos daqueles dentre os mais respeitados homens por nós conhecidos sejam capazes – ironicamente, justo por estarem dispostos a manterem tal respeito a qualquer preço - de expedientes silenciados até para si mesmos.

Segundo Eduardo Giannetti, em “Autoengano”:

“Na mente de cada indivíduo há coisas que ele prefere que estranhos não saibam e, mais perto do centro, coisas que os íntimos não devem saber. Mas há também coisas que ele próprio – o centro alerta que determina o que os outros devem ou não saber – prefere não saber. [...]
A rendição da guarda – o eventual colapso dessa resistência protetora do centro – implicaria uma dupla perda: a perda da respeitabilidade perante os que estão fora e a perda do respeito perante si mesmo, ou seja, daquela sensação interior de que se é ‘honesto e respeitável’.”

Dessa forma, toda vez que a determinado grupo ou academia repleta de homens “respeitáveis” é chegado alguém disposto a revelar-se, revelando por tabela cada um dos outros ali presentes, podemos observar, em maior ou menor grau, dependendo do nível de comprometimento e de dependência de cada um em relação à pretensa aura de respeitabilidade, uma reação de rejeição à nova presença.
Tentarão de várias formas desmerecê-lo, diminuí-lo, enfraquecê-lo, desmoralizá-lo. Na tentativa de se preservarem, tentarão transferir para ele as mazelas dentro de si mesmos caladas. E até acreditarão nos argumentos erigidos como sustentação de sua resistência ao apelo – sempre forte – que lhes chega da verdade.
Via de regra, então, o novo membro será isolado, ou sequer será incorporado. E fingirão não perceber que, em verdade, a academia precisa mais daquele membro do que de qualquer outro; enquanto ele pode muito bem passar sem a academia... AUTOENGANADOS.

Quem não ouviu falar de altos funcionários públicos que, ao cometerem um pequeno ( imagine se grande... ) engano - mera perda de um prazo, por exemplo - são capazes de mandar instaurar processos administrativos em torno de seus subordinados, à guisa de transferir-lhes suas culpas , única e exclusivamente porque não podem correr o risco de perderem sua res-pei-ta-bi-li-da-de?
E por aí vai: o médico que se engana ao pronunciar um diagnóstico e não volta atrás; o professor que responde errado a uma pergunta por medo de simplesmente dizer “não sei, vou verificar”; o jornalista que informa tendenciosamente; o padre que recusa a comunhão à mulher divorciada mas ele mesmo comunga apesar de manter um filho em segredo, ou pior: o padre pedófilo, que defende a criminalização do aborto, enquanto mata em vida crianças inocentes; sem falar no homem que mata ou chantageia para calar aquele que conheça um resvalo seu do passado... Todos eles, do mais inocente ao assassino, no fundo, parecem não se conscientizar plenamente de que o que fazem é paradoxal: em nome do “respeito” que desejam, são capazes de barbaridades.

Assim é que provavelmente cada um de nossos políticos pegos em delito apenas se dá conta do que fez ao ver a própria imagem na televisão. Em seu dia a dia anterior ao flagrante é possível que apenas se sentisse usufruindo de benefícios e facilitações "inerentes" ao cargo pelo qual se empenhou de várias maneiras. E sua indignação, que não compreendemos, talvez esteja associada à certeza de saber que tantos outros de tantos outros partidos estejam naquele exato momento agindo da mesma forma, tanto quanto ele: au-to-en-ga-na-dos.

Da mesma forma deve ocorrer com aqueles empresários que, completamente esquecidos de que existe vida humana para além das paredes de suas indústrias, não hesitam em “externalizar” perigos ao meio ambiente, desde que isso lhes signifique lucrar. Lucrar e ser cada vez mais res-pei-ta-dos. E autoenganados.

Imaginemos, agora, que a um clube frequentado pela nossa classe média de repente se filie membro em tal busca de valores que não se canse de materializar em sonoras palavras a hipocrisia da classe à qual pertence, enumerando seus crimes – tal como os impostos, sonegados -, da compra de produtos pirateados à corrupção e ao tráfico de influência, em meio à prática dos quais luta por leis mais duras para os criminosos do andar de baixo.

Imaginemos que ele também lhes diga que todos ali estão fascinados pelo brilho da classe dominante, pelo glamour do luxo, e lançam mão de uma infinidade de recursos ilegais que os possam iludir no sentido de se imaginarem cada vez mais perto de algumas elites poderosas. Não apenas no sentido de encherem um pouquinho mais o bolso, mas no de se sentirem também no direito de transgredirem sem que o braço da lei os atinja. Res-pei-tá-veis... E autoenganados.

Ele lhes dirá também que esse fascínio é de tal monta que parece levá-los a espécie de identificação com os criminosos do andar de cima, a ponto de tornarem-se o escudo que protege e legitima suas ações contra os criminosos do andar de baixo, previamente culpabilizados e condenados.

Lembrará ele ainda que a exposição pela imprensa de casos de corrupção - infelizmente em geral associados a questões políticas - provavelmente os ilude no sentido de imaginarem que os bandidos ricos estão sendo perseguidos tanto quanto os criminosos de chinelos...

Enfim, informará a todos ali que, submetidos à ideologia, reproduzindo os desejos das elites, pensando agir em função de seus próprios anseios, estão simplesmente AUTOENGANADOS.

Não há dúvida de que será muito difícil a permanência do novo membro naquele clube... Não é todo dia que encontramos alguém disposto a um verdadeiro mergulho no autoconhecimento... Principalmente se isso, à primeira vista, significar abrir mão da única respeitabilidade que conhece.

No entanto, não podemos perder a esperança de que um cada vez maior número de membros fustigadores se insiram em clubes e academias, corajosos. Confiantes de que algumas vezes, ao longo do tempo, aqueles que mais firmemente se lhes oponham possam vir a servir de adubo para suas sementes. Pois a mesma fúria que os leva a rejeitarem a verdade pode acabar por colocá-los diante de si mesmos, tocados pela magia do oráculo de Apolo: “Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”...

Como afirma Giannetti, acenando para a essência da filosofia socrática ( “a vida irrefletida não vale a pena ser vivida” ):
“Sócrates vê um mundo equivocado ao seu redor e vislumbra um mundo de possibilidades à sua frente. À vida cega, febril e desorientada de seus concidadãos, ele opõe o ideal de uma outra vida – de um viver movido não pelo brilho efêmero de falsos valores como o poder, o prestígio, o amor carnal e a riqueza, mas pela ambição de ser melhor do que se é e pela busca sem tréguas do aperfeiçoamento da alma. O autoconhecimento é o caminho que leva de um viver ao outro. Se a vida errada e irrefletida é a consequência inevitável do autodesconhecimento satisfeito consigo mesmo, a vida ética pressupõe o empenho e a capacidade do homem de buscar de forma contínua e incessante a verdade sobre si.”

Somos levados a torcer pelo dia em que respeitáveis sejam considerados aqueles que a cada nova manhã ampliem o conhecimento de si mesmos, assumindo suas verdades, ainda que elas possam, de alguma maneira, ir de encontro à imagem forjada como ideal pelos diferentes grupos sociais. O padre que larga a batina para se casar quando percebe que não pode manter o celibato é um bom exemplo disso.

Quem está disposto a se olhar por dentro e a se mostrar ao outro, quem busca conhecer as molas impulsionadoras de cada uma de suas ações está muito menos sujeito a atitudes que precisem ser encobertas. Por muitas razões. Entre elas o simples fato de que, sem o autoengano, algumas práticas certamente se tornariam ainda mais terríveis, impossíveis de serem levadas a cabo.

Enfim, conhecer a nós mesmos, empenhados num permanente autoaprimoramento, é a única maneira de nos respeitarmos e de sermos legitimamente respeitados, evitando a experiência registrada pelo poeta Fernando Pessoa: “Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me”.