Arquivo do blog

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O "Programa Nacional de Direitos Humanos" e a descriminalização do aborto

A descriminalização do aborto não é uma causa feminista, mas humanista. Pelo menos em nosso país.
E é bom que eu, que me considero mais espiritualista do que muita gente que afirma “ter uma religião”, diga que não sou propriamente a favor do aborto.
Acredito, inclusive, que sua descriminalização não possa deixar de ser acompanhada por um amplo programa que vise também ao esclarecimento quanto a seus efeitos muitas vezes avassaladores sobre o corpo e a alma de uma mulher.

Mas não posso acreditar que tantas mulheres se exponham a riscos tão sérios, entregando-se à dor em mãos curiosas ou pouco escrupulosas, simplesmente porque sejam insensíveis aos apelos da maternidade. E penso que seria análise simplista concluir quanto a espécie de irresponsabilidade de cada mulher que engravide sem querer, mesmo diante de tanta informação sobre os vários métodos anticoncepcionais e sobre o “sexo seguro”.

Na verdade, talvez não seja possível separar de toda a realidade circundante o número imenso de gravidezes voluntariamente interrompidas todo ano no Brasil. Como determinar possível que mulheres e moças ( de todas as classes sociais ), marcadas por um sem número de carências e dores, possam estar lúcidas o suficiente a cada vez que se torne necessário exigir uma camisinha ou esquivar-se do coito iminente?

Pois pode ser, quando não sejam coagidas à relação sexual, que paradoxalmente se debatam entre o desejo de virem finalmente a ser felizes – e aí talvez não consigam abrir mão daquele prazer que de repente se lhe ofereça - e o desejo de acabar com tudo de uma vez ... “O que importa” - talvez pensem amorfamente, então - se, depois do prazer, tiver de encarar uma situação difícil ou definitiva, quem sabe uma grave doença?; talvez a libertadora morte...”

Essa trágica situação, na qual está imerso um número maior de mulheres do que talvez possamos imaginar, precisa ser mudada. Justiça social, qualidade de vida e valores humanos são o que a sociedade deve buscar para todos antes de contorcer-se previamente, sem qualquer abertura para uma ampla discussão, em manifestações contra a descriminalização do aborto.

Na verdade, seria interessante verificar se são as mesmas pessoas posicionadas contra a descriminalização do aborto a também se posicionarem contra outras medidas propostas pelo “Programa Nacional de Direitos Humanos”. Medidas essas que, visando à redistribuição da renda em nosso país, provavelmente contribuiriam para uma significativa diminuição do número de gravidezes interrompidas.
Dentre as mulheres pobres, porque não se sentiriam oprimidas pela fome. Dentre as moças ricas, porque valores humanos importantes sempre se alevantam em uma sociedade voltada para o resgate de qualquer injustiça. E haveria menos gravidezes ( e menos dependentes de qualquer droga – é bom que o lembremos ) acontecidas na busca de alívio para vidas confusas, perdidas muitas vezes na falta de ideais, na crença de não ser possível trabalhar-se por um mundo melhor para todos...

Mas, enquanto as coisas continuam como estão, em relação às pessoas das quais vínhamos falando, devemos concluir que sejam simplesmente contra a descriminalização do aborto e não contra a perda de vidas? Não contra as mortes ou perdas de úteros de jovens pobres submetidas a intervenções - que continuarão a acontecer nos porões de nossa sociedade - sem nenhuma assepsia?

Diante de Deus, teria mais valor protegermos nossa pessoal ( e egoísta? ) evolução espiritual, abstendo-nos de discutir sobre o “pecado” da descriminalização do aborto ( assim considerado por muitos mesmo se praticado segundo critérios bem delineados ), do que nos preocuparmos com a vida e a fertilidade de jovens mulheres? Como afirmá-lo?

E o que dizer daqueles que se posicionam oficialmente contra a descriminalização do aborto, mas não hesitam em induzirem seus filhos e filhas ( ou amantes ) a interromperem, nas caladas das noites e contra a própria vontade, qualquer gravidez considerada por seus pais fora de hora ou em desacordo com as aparências a serem mantidas?
A hipocrisia de tais criaturas pode chegar ao máximo se conscientes de que não se importam de impedir o acesso à Saúde Pública das mulheres menos favorecidas, enquanto sustentam médicos pouco escrupulosos, quem sabe capazes de diagnosticar “metropatias hemorrágicas” - a serem tratadas em inocentes hospitais?; certamente mestres em suspeitas cirurgias dentro de clandestinas clínicas de luxo.

Enfim, quem defende a descriminalização do aborto, em nosso país, não é necessariamente a favor da prática em si. Inclusive, deveria defender paralelamente a criminalização de todos aqueles que induzissem qualquer mulher a essa prática. Seja em nome das condições exigidas a um “futuro promissor” ou da total falta de recursos materiais dos pais em potencial. Pois é indiscutível o fato de que um filho pode transformar para muito melhor a vida de qualquer pessoa ( sem falar que a adoção deve ser sempre uma possibilidade ).

E não podemos deixar de acrescentar que quem defende a descriminalização do aborto deveria defender a maternidade como um direito. Faço questão de frisá-lo porque me horrorizo diante daqueles que levantam essa bandeira paralelamente ao posicionamento a favor, por exemplo, da fascista ideia de esterilizar-se mulheres pobres.


Fico pensando, então...

A interrupção dos primeiros momentos de uma gestação, segundo algumas informações, não diferiria em muito de outros métodos contraceptivos; e a anticoncepção, mesmo contra a determinação da Igreja, já é divulgada pelo Estado como parte de seu programa educativo...

Por outro lado, o direito à vida é devidamente delineado por nossa Constituição, e, segundo especialistas, em respeito a tal princípio, os transplantes são permitidos apenas a partir do momento em que se constate a morte cerebral.

Pelo mesmo raciocínio, alguns não consideram a existência de vida humana antes da formação do sistema nervoso. Assim, talvez se pudesse descriminalizar a prática do aborto se realizada estritamente dentro daquele período em que, a se supor anterior ao início da vida, permitisse algum alívio às consciências... O que, de maneira alguma estaria sendo considerado “certo”, pois não estamos tratando aqui de uma oposição simplista do tipo “certo x errado”. Estamos falando de espécie de concessão ao provavelmente menos terrível.

E aguardemos que um cada vez maior número de pessoas se conscientize de que precisamos arremessar para bem longe toda e qualquer hipocrisia a nos impedir de começarmos a discutir amplamente qualquer questão relacionada à construção de um mundo melhor para todos. E torçamos para que um cada vez maior número de pessoas se conscientize de que esse mundo melhor começa dentro de nós mesmos e se expande através de nossa postura diante de cada situação.