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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Bastardos Inglórios

Não gostei.

Fiquei pensando e cheguei à conclusão de que Hitler, caso pudesse assistir, de onde quer que esteja, ao prazer macabro fomentado e satisfeito por produções desse tipo, vibraria, congratulando a si mesmo por haver conseguido a proeza de continuar seu trabalho muito depois de sua morte.
Na verdade, continuá-lo de forma ainda mais assustadora, posto que agora, além de corpos mutilados, vemos, na tela, almas e mentes sequiosas por violência tanto quanto ele e alguns de seus homens no auge de sua “glória”.
A própria “reprodução maciça” ( um de seus sonhos ) de si mesmo, de seu ódio, de sua monstruosidade, parece ser o que consegue em momentos em que filmes como esse preparam terreno para serem recebidos com tanta empolgação. Ainda que em tom de brincadeira.

A História Mundial ( bem como a de cada um de nós ) nos mostra que muitas vezes não foi possível evitar-se que inocentes fossem atingidos em seus corpos, em suas vidas... Aconteceu, infelizmente, com os judeus e com todas as outras vítimas de Hitler.
No entanto, depende de nós protegermos nossa humanidade. Mesmo naqueles momentos em que sejamos obrigados a nos defender de qualquer agressão ( matar durante uma guerra, em defesa de vidas inocentes, pode ser a regra; deliciar-se com tal prática sempre será perversão ); mesmo todas as vezes em que a terrível lembrança de anormais como Hitler reacenda nosso sentimento de solidariedade em relação a cada uma de suas vítimas.
Gosto de repetir: “ podem nos fazer mal, mas não podem nos tornar maus”. A não ser com nosso consentimento.

É triste que a humanidade ainda esteja tão inconsciente a ponto de precisar de catarses do tipo “Bastardos Inglórios”.
Conversando com a socióloga Maria Lúcia Rodrigues Maia sobre o assunto, ouvi dela algo muito interessante. Ela disse que é muito cômodo ( para o Estado ) que inimigos antigos, históricos, sejam o tempo todo reavivados na memória do povo, para que o povo se debata contra eles, esquecendo-se de outras ameaças.
Na mesma hora, lembrei de uma entrevista, na revista de "O Globo", com o delegado Orlando Zaccone – responsável, ao lado de Marcelo Iuka, pelo projeto “Carceragem Cidadã”, na Polinter, e membro da "Law Enforcement Against Prohibition", organização internacional dedicada à defesa da legalização das drogas -, na qual ele afirmava, a respeito da proibição relativa às drogas, que ela ( a proibição ) é mantida “para se incrementar a guerra contra o inimigo do Estado.” E ele explica: “O Estado sempre precisou de inimigos: bruxas, hereges, comunistas. Hoje, são pobres armados. É só uma questão política”.
Pela força e coragem, merece ser reproduzido na íntegra o que diz ele a seguir, na mesma entrevista: “ A última ponta do negócio das drogas é o varejo. E é aí que a repressão atua. Uma pesquisa da UFRJ mostra que a maioria dos presos do Rio são traficantes pegos sozinhos, com pequenas quantidades. Ou seja, aviões. Essa política que rotula os pequenos participantes do negócio é o que nos faz questionar o interesse da repressão. O comércio de drogas gira mais de 500 bilhões de dólares/ano. A repressão não quer atingir a base econômica, que interessa ao sistema. O dinheiro das drogas circula, sai do mercado ilegal para o legal. Quantas investigações há no Brasil sobre lavagem de dinheiro de drogas? Nenhuma”.

Em resumo: ou temos aqueles inimigos, como Hitler, já vencidos pela morte e pela História ( por ironia, aposto que muitos daqueles que mais aplaudiram “Bastardos Inglórios” são os mesmos que se posicionam contra a Comissão da Verdade proposta pelo “Programa Nacional de Direitos Humanos”... ), ou esses outros, segundo Zaconne,"identificados" pelo Estado e que, apesar de atuais, estão longe de ser nossos maiores e reais inimigos.
Aliás, esses últimos, como lembrou Maria Lúcia Maia, após nos serem apresentados como OS ATUAIS INIMIGOS da sociedade, acabam sendo jogados em espécies de campos de concentração, quais sejam as cadeias superlotadas, fornos de quase 60 graus ( absolutamente contra aquilo por que lutam autoridades como o Dr. Orlando Zaccone )...
Isso acontece por que são bandidos? Não, não seria por isso, uma vez que, como nos mostrou Zaccone, os envolvidos com a lavagem do dinheiro do tráfico de drogas continuam tranquilamente entre nós.
Isso acontece por que são pobres? Talvez a resposta seja sim.
E se ser pobre, pelo jeito, pode ser considerada uma condição de inferioridade, como na época de Hitler foi considerada, por exemplo, a condição dos deficientes físicos, então, temo que possamos estar diante de uma sociedade quase nazista, capaz de tratar preconceituosamente as pessoas.
E contra esse tipo de coisa é que nos deveríamos mobilizar, ao invés de nos "deleitarmos" em sadismos contra um inimigo que, derrotado e mundialmente desprezado, não corremos o risco de "esquecer".

Que tal pensarmos que, se por conhecermos bem a História do terrível regime nazista, podemos estar atentos no sentido de resistir a qualquer outro "Hitler" que nos ameace com algo parecido, talvez devêssemos conhecer melhor os períodos mais trágicos da História do Brasil a fim de, no futuro, podermos evitar que se repitam?

Que tal procurarmos nossos piores inimigos nos valores que temos abraçado e que nos levam a aceitar passivamente as coisas a ponto de deixá-las chegarem aonde chegaram, desenhando a sociedade nada admirável na qual vivemos?

Que tal brigarmos por nossa humanidade?

Que tal nos distanciarmos de Hitler, ao invés de dele nos aproximarmos sob o pretexto de “vencê-lo”?

Que tal, se assistirmos a “Bastardos Inglórios”, permitirmos que nossos corações se horrorizem com tanto sangue e sadismo?

Que tal?

Obs. 1) Consideramos importante ainda destacar as seguintes palavras do delegado Orlando Zaccone ( assinamos embaixo ): "NÃO SOMOS A FAVOR DO CONSUMO DE DROGAS. AS PESSOAS CONFUNDEM O PLANO MORAL COM O JURÍDICO. MORALIDADE É ALGO INDIVIDUAL. JUSTIÇA É COLETIVA - E TEM QUE PESAR OS DANOS PARA A COLETIVIDADE."
2) O delegado Orlando Zaccone é autor do livro "Acionistas do Nada. Quem são os traficantes de drogas" - citado em "A Juíza".