Desconcertante a discussão sobre
se as biografias deveriam continuar a ser previamente autorizadas pelos
biografados, ou não...
Em vista da ontem anunciada
mudança de posição daqueles que defendiam a proibição dos textos não
autorizados previamente, e que, aparentemente, passam a defender apenas o direito (que já
exerciam) de brigar na Justiça caso se sintam de alguma forma ofendidos em
alguma página, além de darmos vivas à sua iluminação, devemos exigir que fique
claro que tal sentimento não deva se basear no fato de um biógrafo não dar à
imagem delineada em seu trabalho o perfil i-m-a-g-i-n-a-d-o pelo biografado.
Em nome da clareza necessária no
que diga respeito ao tema, talvez seja bom lembrar a confusão que alguns
argumentos sustentados pelo grupo “Procure Saber”, que vêm sendo afirmados em
nome da proteção à “privacidade”, poderiam causar. Paula Lavigne, no “Saia
Justa”, da GNT, por exemplo, chegou a sugerir que a pelos defensores dos
biógrafos reivindicada “liberdade de expressão” abriria precedente a
manifestações racistas e homofóbicas, colocando em xeque as leis que as coíbem.
Inclusive sendo, no meu entender, bastante indelicada com uma das debatedoras do programa.
Uau!!!
Em primeiro lugar, privacidade –
segundo o Aurélio, o mesmo que “intimidade” – é um conceito que deveria ser bastante
analisado por cada um daqueles de nós que se tornou espécie de brinquedo da
tecnologia moderna. E brinquedo muitas vezes disposto a abrir mão de se
conhecer profundamente em favor da construção da imagem que deseje construir de
si para eleitores, espectadores ou redes sociais...
Em segundo lugar, a infeliz
comparação da empresária Paula Lavigne só teria alguma procedência nos casos em
que houvesse flagrante intenção de caluniar, humilhar ou difamar o biografado
(assim mesmo se não existissem leis específicas para calúnia e difamação). A
verdade é que a organização de informações legalmente coligidas, ainda que
subjetivamente interpretadas, estará sempre bem longe do crime que é menosprezar
pobres, nordestinos, negros ou homossexuais.
E fico pensando que a única
explicação para que alguém possa se sentir incomodado com a possibilidade
de ver sua vida tratada por alguém nas páginas de um livro seja
o fato de, talvez inconscientemente,
acreditar que pode descobrir ali algo sobre si mesmo do qual não havia ainda
sido capaz de se dar conta...
Por outro lado, fazemos
biografias o tempo todo. De certa forma, por exemplo, até ao analisarmos,
casualmente que seja, um romance, um artigo de jornal ou uma música, relacionando
a obra ao perfil que tenhamos desenhado de seu autor... Sem falar que cada um
de nós interpreta o tempo todo as vidas de todos os que nos cercam, famosos ou
não, em função da bagagem que trazemos. Em última análise, falamos também de
nós mesmos sempre que falamos de cada outro. E é isso o que nos dá o direito de
continuarmos nos expressando.
Por que qualquer biografia, por
menos ou mais séria e rigorosa que seja a pesquisa em que se baseie, haveria de
ameaçar o biografado? Seria a fragilidade da própria consciência sobre si mesmo
que o leva a brigar por algumas palavras? Lembremos que não raro, ao longo de
uma pesquisa, o escritor se depara com informações contraditórias, a apontarem
para lados opostos, e ele tem de decidir, mais ou menos conscientemente, com
seu coração, com sua sensibilidade, com sua capacidade de se ver no biografado,
qual dado deva valorizar mais. Ainda que mencione todos eles. O que talvez
torne a Biografia espécie de gênero literário impossível, levando-nos a pensar que o ideal fosse que todas as biografias contivessem a informação de seu natural hibridismo.
Certo, errado... Verdade, mentira...
Você seria capaz de reproduzir agora cada passo seu no dia de hoje? E se
tentasse novamente daqui a uma semana, um ano, duas horas, o resultado seria o
mesmo? Ou seria obrigado a preencher lacunas com a imaginação, ora de um jeito,
ora de outro, ainda que bem intencionadamente, simplesmente porque não sabe,
porque não se lembra de tudo, ou se lembra confusa e emocionalmente?
O que é a História, segundo
importante axioma jornalístico, se não um conjunto de versões?
Ah, a vaidade humana!... A não ser
que se decida decorar o que deseje como sua história para poder reproduzi-la
sempre igualzinha à guisa de autobiografia, é certo que – e a psicanálise pode
ajudar nessa descoberta – as histórias verdadeiras sempre serão contadas com
ênfase e seleção diferentes dos fatos a cada vez que seus protagonistas se
proponham a contá-las. Por que não haveria de ser da mesma forma quando a
reconstituição deva ser feita por meros observadores?
De qualquer forma, parece que
toda essa discussão pode gerar um entendimento maior em torno de outro tema
importante, qual seja a difamação que se faz de alguém irresponsavelmente
sempre que uma informação parcial e tendenciosa é repetida. Por exemplo, quando
comentamos que alguém passou por uma sindicância e não
informamos que o motivo fora, por exemplo, faltas – digamos, por motivo de
saúde não reconhecido pela instituição - ao trabalho, e deixamos que a
imaginação do ouvinte denigra a imagem da vítima... Ana Maria Machado,
presidente da Academia Brasileira de Letras e autora do livro “Infâmia”(em
torno de uma sindicância kafkiana), segundo livro publicado no Brasil – 2012 - tendo por
tema central a estranha instauração de uma sindicância (o primeiro foi “A
Juíza”, em 2009), afirma, em artigo publicado essa semana no Globo:
“Se uma revista semanal publicar
uma mentira – como uma denúncia contra um inocente, no dia seguinte os jornais
repercutem, depois o telejornal repete, mostra portas fechadas à guisa de
comprovação, afirma que o acusado não foi encontrado. Após meses sem que a
investigação encontre qualquer indício, o processo pode ser arquivado. Nunca o
autor da denúncia terá de explicar de onde ela saiu: o sigilo da fonte é
sagrado. Ninguém conhecerá os interesses escusos de quem plantou a acusação. O
cidadão pode ser inocentado. Mas já estará destroçado e poucos saberão de sua
comprovada vida sem mácula. O interesse jornalístico na defesa é menor. A pecha
fica para sempre. Um pedido de reparação tem de correr onde se publicou o
texto, uma cidade grande, com muitos processos a serem examinados por poucos
juízes [...]”
Dito isso, não há como não
concluirmos que o tempo todo convivemos com injustiças terríveis envolvendo o
nome de alguém; e na maioria das vezes nada tendo a ver com a publicação de
textos biográficos.
No entanto, como o assunto
fervente são as biografias, voltemos a elas. Alguns acreditam piamente que seu
objetivo seja lucrar com o interesse crescente pelas histórias de
personalidades, e pulam em defesa da autorização prévia...
Bem, partindo do princípio de que
geralmente são biografadas personalidades públicas, talvez devêssemos levar em
consideração o fato de que tal interesse, antes de ser espécie de injusto
castigo infringido àqueles que ousaram se destacar de alguma forma, pode ser,
dentre outras coisas, parcela a ser paga por todos em função daqueles muitos
que, ao correrem atrás de votos, de espectadores ou fãs, não medem esforços,
contratando até marqueteiros, no sentido de forjarem a imagem mais
comercializável em dado momento. Afinal, essa é ou não é a sociedade do espetáculo?
E isso é feito de maneira tal
que, após plásticas, historinhas de amor e de vida produzidas por marqueteiros
e divulgadas por veículos que dividem lucros com as figuras produzidas, ao
final, sinceramente, se alguém tiver legalmente acesso a informações que possam
delinear de qualquer outra maneira (para melhor ou para pior), mais humana
inclusive, aqueles que o público fora obrigado a invejar, admirar ou engolir, é
muito bom que possa fazê-lo. E é muito natural que o público queira ler ou ouvir as novas histórias. A título não de castigo, mas de
certo desmascaramento daqueles que não hesitaram em manipulá-lo. Daqueles
inclusive que, convenientemente esquecidos de si mesmos, acabaram por acreditar
na imagem incorporada.
Quando a Constituição protege o
direito à imagem de cada um de nós certamente não nos dá o direito de forjar,
iludir, trapacear para conquistar o que quer que seja. Isso seria falsidade
ideológica, pois não? E assim é que, mesmo aqueles que não vistam aqui a carapuça,
ao se tornarem personalidades publicamente idolatradas, em nome desse direito
do povo a ter acesso ao que quer que digam sobre aqueles que literalmente
sustenta, deveriam suportar da melhor maneira possível o fato de se tornarem
tema de algum autor.
Claro, para as infâmias,
mentiras, calúnias, difamações, Justiça mais rápida. Conforme proposta do
ministro Joaquim Barbosa e de outros tantos que, ao longo dos últimos dias, reafirmaram
ser isso o que parece faltar. O que, pelas últimas notícias, parece haver sido
compreendido inclusive pelo cantor Roberto Carlos que, em entrevista ao Fantástico, no último domingo, declarara:
“O escritor não cria uma
história. O biógrafo só narra uma história que não é a dele. Ele passa a ser
dono de uma história que não é a dele e isso não é certo.”
O cantor fala mesmo como um rei.
Ele realmente parece acreditar que a questão das biografias gravita em torno da
posse sobre histórias de vidas. Como se não contracenássemos o tempo todo,
direta ou indiretamente, com toda a humanidade. Como se não dependêssemos do
que observamos, ouvimos, compartilhamos, para que nossa inspiração brote e nos
tome como instrumento. E quanto ao inconsciente coletivo de que falava Jung? O
artista não seria aquele mais capaz de de lá trazer arquétipos e trabalhá-los a
ponto de universalizar o tema escolhido, de maneira a tocar inúmeras pessoas naquilo
que as iguala numa essência formada por medos, desejos e fantasias?...
Cada um de nós provoca inúmeras
impressões naqueles que nos rodeiam todos os dias. A diferença entre nós e
aqueles que se destacaram é que eles atingem, de forma mais imediata, com sua obra, com seu modo de ser
e estar no mundo, muito mais pessoas. E se é para falarmos em posse, cada um de
nós é dono das próprias impressões. Na mesma proporção, inclusive, que da
própria história de vida. E devemos ter o direito de divulgá-las como
quisermos. Até porque, desde a antropofagia modernista, estamos mais
conscientes de que nossas
criações são
fruto de nossas impressões sobre tudo o que nos atinja devidamente digerido nas
entranhas de nossa própria sensibilidade. Ou seja: a obra - e a vida - de cada
artista talvez seja tão única e individual quanto coletiva.
Acresça-se a isso o fato de que
nenhum autor tem completo controle sobre aquilo que escreve. Personagens de
romances ou biografias – na medida em que as informações precisam ser
selecionadas - tomam vida própria e dirigem os textos em direções insuspeitas,
sem que muitas vezes o escritor possa intervir. E isso certamente acontece
também no caso das autobiografias, estas, naturalmente, mais sujeitas à
influência da senhora vaidade.
De qualquer forma, fortalecer a
privacidade em uma época na qual ela, mais do que nunca, nos pareça ameaçada,
talvez seja descobrir que a privacidade verdadeira concentra-se num pequeno
ponto no centro de nosso peito. É lá que sentimos quem somos verdadeiramente. É
lá que devemos buscar conforto diante de qualquer injustiça, ou da indevida
exposição de nosso nome. A verdade é que muitos parecem esquecidos de que nossa
opinião sobre nós mesmos é mais importante do que qualquer outra opinião. E de
que talvez vivam mais em paz aqueles que, embora de alguma forma mal vistos
por algum outro, estejam em boa sintonia com o próprio coração, do que os que se
acostumaram a lucrar com o engano produzido pelo autoengano em que, em algum
momento, escolheram viver.
Para concluir, acredito que fosse
bom desenvolvermos nas escolas, paralelamente à valorização da informação, a
capacidade de sadiamente duvidar do que vai escrito (quem sabe, propondo-se
vários autores sobre o mesmo tema, ao invés da escolha de determinada
tendência), por mais sério que possa ser – ou parecer – qualquer texto. Em
breve, trarei alguns trechos do meu “Vaidade é Loucura (na obra de Machado de
Assis)” que registram o quanto o nosso “escriba das cousas miúdas” já era
consciente da relativa importância das páginas da própria História. Vejam como
concluo ali o capítulo intitulado “O Papel da História”:
“E é assim, submetidos aos acasos
e às nossas próprias volubilidade e vaidade, que nos perguntamos o que seria de
nosso desejo de conhecer o homem que nos precedeu se não fossem escritores como
Machado de Assis que, sinceramente empenhados em tratar da própria condição
humana, fazem nas entrelinhas (e melhor do que se História [ou biografias,
claro] desejassem fazer) importantes retratos de suas épocas. Retratos esses
através dos quais acabamos por nos ver, já que, guardadas as devidas
proporções, todas as épocas são muito parecidas, pois o homem, essencialmente
falando, permanece o mesmo. Não é à toa que os bons romances conseguem, para
seus personagens, a identificação de leitores de épocas [e lugares] diversas. O
momento histórico é quase como um cenário, para o qual contam também os trajes
e os costumes, as escolas filosóficas, as teorias científicas e os postulados
religiosos. Os cenários mudam, mas permanecem quase iguais os conflitos, os
desejos e os sete pecados capitais.”
Obs. Não posso deixar de citar aqui o último parágrafo do
artigo de Nelson Motta, publicado em “O Globo”, no último dia 25:
“Na sociedade da informação e do espetáculo circulam na rede
tantas mentiras, boatos, lendas, calúnias e difamações [eu acrescentaria
informações tendenciosamente parciais] sobre todo mundo que a única certeza
futura é que nenhuma biografia, por melhor ou pior que seja, vai ser o juízo
final do biografado.”