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domingo, 24 de abril de 2011

LIBERDADE DE EXPRESSÃO ( ? )

Nada mais flagrante da ideologia de um jornal do que depararmos com um seu encarte sobre debates havidos, entre alguns de seus colaboradores contumazes, em torno da muito falada liberdade de expressão, tendo como patrocinadora nada mais, nada menos do que a maior indústria de cigarros do país.

Para bom entendedor ...

E eu, que nem sempre compreendi a evidência de certas “sutilezas” e que até hoje capto apenas(?) o espírito de certas coisas, gosto de escrever para aqueles que estão a meio caminho da consciência, cada vez menos vulneráveis às ideias do poder...

A eles, como sempre, dedico minhas reflexões de hoje:

1) O autor do livro “O Estado babá...” também participou de tais discussões... Não lhe parece fácil criticar-se o Estado babá vivendo-se em um país antigo - Inglaterra, com alto nível de Educação e respeitada TV pública?
Realmente, onde a educação, a cultura e a saúde, além da satisfação de outras necessidades básicas, estejam ao alcance de todos, a crítica a qualquer restrição à liberdade individual de escolha pode ser apropriada. Afinal, espera-se que nesses países estejam todos, pelo menos, quase em igualdade de condições.

Aqui, no entanto, onde à maioria é reservado apenas o direito de trabalhar pensando no alimento a ser consumido na próxima refeição... Onde a Educação e a Cultura estão muito distantes de atingirem o objetivo ínfimo de esclarecerem nossos “menores” e “maiores” cidadãos quanto a deverem acreditar em si mesmos e naquilo que sentem no fundo de suas almas - de onde poderia vir qualquer senso crítico... Bem, aqui, se não tivermos algum cuidado por parte do Estado, essas pessoas ficarão mesmo é à mercê inclusive de sociopatas desejantes de lucro ilimitado, e do que quer que seja dito por qualquer propaganda “bem” bolada...

Em algum lugar li declaração da professora Ângela Kretschmann, segundo a qual o acesso a conteúdos é fundamental para que as pessoas se sintam partes de uma civilização, “que se comunica e dialoga em uma linguagem que, se não for acessível, significa a exclusão”...

A revolta de Jirau, como definiu o procurador do trabalho no Rio Cássio Casagrande, em recente artigo publicado pelo jornal O Globo, “em sua força bruta e chocante, também nos faz pensar como ainda estamos longe do Primeiro Mundo...”

O que você infere disso?

Eu infiro que, em um país de excluídos – muitas vezes infantilizados pela insegurança resultante dessa condição, o mínimo que o Estado pode fazer, enquanto reúne forças para as providências necessárias a uma real e humana distribuição de renda e de direitos – inclusive o da total independência associada à maioridade -, é tentar frear, através de leis e cuidados, aqueles que, sem qualquer escrúpulo, só pensem em extrair lucro de nossa frágil população...

Mão de obra barata, quase escrava em algumas situações, de um lado, é igual a lucro, lucro, lucro... E, de outro lado, muito mais lucro, ao atingirem por campanhas publicitárias, diretas e indiretas (muitas vezes embutidas, por exemplo, em uma entrevista em programas ou jornais televisivos ), nosso povo, em termos Históricos ainda criança, levando-o ao consumo de coisas legais e ilegais – não raro em função justamente da frustração disso tudo resultante, e à custa da própria saúde e das finanças de suas famílias.

2) Li, em algum lugar, que o jornalista Reinaldo Azevedo teria dito que a “sorte da liberdade de expressão depende da existência do patrocínio, de empresas que não dependam tão umbilicalmente do Estado”...

Empresas como a Souza Cruz, por exemplo?

Vejam o texto publicitário, fechando o citado caderno especial com o conteúdo dos debates em torno da dita “LIBERDADE”:

“Entre todos os valores que existem, um é inegociável: LIBERDADE

A Souza Cruz acredita na liberdade de expressão, como fundamento essencial da livre-concorrência entre as empresas que trabalham com produtos legais, e na liberdade de seus consumidores adultos para fazer suas escolhas livremente. Uma grande empresa não é só medida por seus números, mas também por seus ideais. Valorizar e praticar princípios como livre-iniciativa, livre-concorrência, livre-arbítrio, livre-expressão é o que faz uma empresa ser grande. Não importa o tamanho que tenha. É nisso que acreditamos. É isso que fazemos há 107 anos.”

Ora, ora... Se um bebê crescido sem ouvir qualquer palavra jamais aprenderia a falar, imagino que não possamos considerar “adultos”, em face de mensagens sofisticadamente urdidas, qualquer de nossos culturalmente “excluídos” sexagenários...

Depois, que liberdade pode haver, por exemplo, no gesto da dona de casa humilde que compra um monte de cubinhos de caldo de carne, após assistir, em um programa de televisão repleto de gente bonita e sadia, a execução de uma receita utilizando-se temperos à base de glutamato monossódico? Temperos esses, diga-se de passagem, provavelmente jamais usados por qualquer um dos magros, esclarecidos e elegantes anunciantes do produto...

Que liberdade no gesto daqueles que vimos, em nosso país, antes das restrições às propagandas de cigarros, iniciarem-se no vício movidos pelas imagens de sucesso, liberdade, força e alegria insufladas em seus inconscientes pelas imagens veiculadas através do único instrumento de distração de que dispunham então ( sem falar que campanhas publicitárias atingem toda a população, independente de sua faixa etária )?

Não confundamos liberdade PARA os interesses comerciais, com liberdade em seu sentido amplo, humano, condição primeira a ser desejada por todo e qualquer homem...

Não estaríamos hoje vendo as restrições à venda de antibióticos em nossas farmácias justamente por conta da medicalização que vimos vivendo? A propaganda atingindo inclusive nossos médicos, levando-os(?) a receitarem remédios da moda, a resultar(?) na infeliz conclusão dos pacientes de que medicar-se sozinho não poderia ser muito difícil???

3) Ouço dizer que, hoje, a direita defende a liberdade, enquanto a esquerda preocupa-se com o fim das desigualdades... Que bobagem!

A direita parece defender, sim, hoje, como sempre, a liberdade, mas apenas para suas próprias ações e fins lucrativos, ainda que à custa da saúde do povo. Quanto à preocupação das esquerdas – e vamos parar com esse negócio de associar “esquerdas” com rançosos comunismos - com o fim das desigualdades, ela não exclui o interesse relativo à liberdade, uma vez que o sentir-se "igual" é justamente o suporte necessário à conquista de qualquer liberdade, da capacidade para qualquer decisão autônoma e não impulsionada pela ideologia dominante.

Mas voltemos ao texto publicitário acima citado: ao frisar ser produtora de algo “legal”, a empresa produtora de cigarros parece querer utilizar em seu benefício um dos argumentos utilizados por alguns daqueles que defendem a legalização de qualquer outra droga, que é justamente a questão da liberdade de cada adulto escolher o que queira para si mesmo. Pois, de seu lado, utilizam como argumento, os defensores do Estado de direito a reivindicarem igualdade de condições – legalização - para a produção, venda e consumo de qualquer droga, o fato de ser “legal” o uso do sabidamente nocivo tabaco...

E os publicitários contratados pela Sousa Cruz parecem querer associar a tão estimada liberdade de expressão à liberdade de propagandear-se à vontade o consumo de seus produtos... Se antes víamos alpinistas, desportistas, garanhões soltando suas baforadas em cada colorido e belo filme publicitário de cigarros, agora pode ser que vejamos a polêmica e muito valorizada liberdade de expressão como sinônimo do direito não só de fumar, mas também do direito de divulgar o fumo omitindo-se os mais do que conhecidos malefícios por ele trazidos ao fumante e seus vizinhos...

Ora, ora, ora... Liberdade de expressão é uma coisa, liberdade de manipulação é outra muito diferente.

Em um país no qual as pessoas sequer podem usufruir o direito de ir e vir, por não terem como pagar o transporte, tendo de permanecer diante da televisão em seus poucos momentos de lazer, a propaganda pode ser arma muito perigosa... Vide o endividamento da população com empresas fornecedoras de empréstimos, após ser seduzida por carismáticos artistas a lhe dizerem como ali o dinheiro seria “fácil, fácil, fácil”...

A verdade é que o Estado que não consegue permitir que grande parte de seus cidadãos sejam pais e mães maduros e presentes para seus filhos – incapazes que são muitas vezes de cuidar até de si mesmos - tem mesmo obrigação de se transformar em um Estado-babá.

Quanto a ser “legal”, qualquer droga dessas terríveis que há por aí, ao ser legalizada, jamais tornar-se-ia legal no sentido de bacana, boa, respeitável, digna de belos e bem produzidos anúncios nos maiores canais de comunicação... Seria apenas legal no sentido de “sob controle” da sociedade... Sem falar que, ao contrário do que parece pleitear subliminarmente a Souza Cruz – liberdade de expressão para divulgar amplamente os seus cigarros? -, as drogas outras, após sua possível legalização, ao invés de terem seu consumo incentivado, contariam é com um especial programa educativo, propaganda contra mesmo; educação no sentido de dar-se noção, principalmente aos mais jovens, dos diferentes significados possíveis ao signo “legal”, dentre os quais sem dúvida prevalece o “controlado”.


4) Enfim, diria aos empresários que desejem total, ampla e irrestrita liberdade para dizerem o que quiserem e como quiserem sobre seus produtos, que invistam, nas próximas décadas, em Educação; que se disponham a ganhar menos; que doem parte de seus lucros; que se disponham a pagar mais impostos, inclusive relativos a heranças; que trabalhem em favor da Reforma Agrária... Assim, diante de um povo mais igual e fortalecido, diante de adultos que não sejam analfabetos funcionais, facilmente manipuláveis e sempre correndo o risco de pegar o ônibus errado, talvez possam dispor de sua propagandas como queiram...

Enquanto isso, espero que cada vez mais se vejam obrigados a aceitar as regulamentações do Estado-babá de um povo que, ainda quando intui que algo está errado, por não confiar em si mesmo, vítima que é da ideologia dominante, fica vulnerável aos apelos da propaganda e consome sem escolher... Muitas vezes, inclusive, sem poder.
( Depois, certamente é muito mais compreensível que qualquer Estado seja babá de seu povo do que de grandes empresários e banqueiros. )

De qualquer forma, depois de tal exercício, talvez outros valores pudessem ser por tais empresários conquistados, levando-os à consciência de que LIBERDADE é muito mais do que lucrar sem limite, podendo ser justamente soltar-se da obrigação de acumular sem parar.


Obs. 1) Em “Eu matei Sherazade...”, a escritora árabe Joumana Haddad, em um de seus desabafos, deixa claro o quanto muita liberdade dada à publicidade pode infiltrar valores na população, cerceando a liberdade de existir e de se conhecer dos indivíduos – lá como aqui:

“Eu matei Sherazade com as mãos de toda adolescente que morre de fome por ter sofrido uma lavagem cerebral que a levou a acreditar que os homens vão gostar dela em pele e osso.” ( embora, eu diria, alguns, sob o efeito das mesmas influências, cheguem a acreditar que gostem )

“Eu matei Sherazade com as mãos de toda boneca Barbie que poluiu a cabeça de todas as menininhas de todas as cidades do mundo.”

2) Uma contradição do nosso mundo “fetichizado”, no qual tudo se transforma em objeto a ser vendido, é que, de uma ou outra maneira, alguns daqueles que com lucidez o atacam acabam sendo divulgados por vários canais... Vejam outro trecho desse livro:
“Na verdade, foram-nos dadas unhas por uma razão: para diferenciar, para cavar mais fundo, para rasgar a pele generalizadora, sensacionalista, e estender a mão para o que está além da superfície brilhante...
Pois os véus existem em muitos modelos e texturas: há o véu do repúdio; o véu da ilusão; o véu da mensagem política tendenciosa; o véu da visão e da extrapolação distorcidas; o véu da apreensão e do medo; o véu do julgamento tacanho; e, o mais perigoso de todos, o véu do símbolo falso, fabricado pela mídia...”