Comecemos pelo fim: durante a última cena de “Tropa de Elite 2”, na qual somos levados a sobrevoar Brasília e seus castelos, a voz de Nascimento nos coloca diante da seguinte questão: “quem sustenta tudo isso?”
A verdade é que, se o didatismo não se fizesse presente nas explicações que seguem e que nos levam a deduzir o ponto de vista do diretor ou roteirista do filme, o espectador, largado, sem paraquedas, sob o peso dessa interrogação, talvez fosse capaz de aterrissar em conclusões menos óbvias do que a certeza de que esse preço esteja embutido apenas nos impostos pagos pelo povo e nos maus serviços por ele recebidos, com a insegurança e a corrupção a ameaçarem a todos permanentemente...
Nascimento – ou José Padilha - tem razão sobre o preço alto pago por todos nós. Mas peca ao tentar nos levar a crer que o que sustentamos seja apenas a boa vida de marginais travestidos de políticos... Pois não apenas sustentamos aquilo tudo no sentido de mantê-lo, financiá-lo, mas também no sentido de originá-lo. Com nossas escolhas diárias. Com nossos valores. Com nossa sede consumista. Com cada uma de nossas posturas diante de cada acontecimento... Os valores - aquilo por que um homem vive e morre e algumas vezes mata– são produzidos e transmitidos, em cascata, SEMPRE de cima parabaixo. E aí está a RESPONSABILIDADE de nossas elites, das classes privilegiadas, dos pensadores e intelectuais diante de nossa miséria humana e social.
Pois não é apenas do maconheiro que, em certo sentido, se pode dizer que sustente os traficantes... Outros vícios, como dinheiro e poder e vaidades, além de, por tabela, serem pai e mãe do vício em qualquer droga, são exatamente o que sustentam, alimentam e multiplicam toda a podridão que vemos a nossa volta e embaixo de nós, caso sobrevoemos Brasília ou as casas de muita gente “boa”.
E a classe média colabora: toda vez que, por exemplo, um de seus filhos compra recibos para o imposto de renda ou adquire um produto pirateado ( a cada vez que o povo “dá um jeitinho” diante daquilo que acha injusto, ele se acomoda e se afasta do dia em que, força unida, irá exigir um mundo melhor para todos ), está colaborando na manutenção dessa sociedade doente na qual vivemos.
Repetindo, em pequena escala, os grandes crimes do Capital, o povo enfraquece porque, identificado com seus algozes, torna-se impossível combatê-los...
A verdade é que eu provavelmente, apesar das ressalvas acima,permaneceria muito tempo sob a simples impressão de haver gostado bastante do filme “Tropa de elite 2”, sem, no entanto, conseguir explicar a razão de um certo desconforto a me cutucar a alma, não abrisse no dia seguinte o jornal “O Globo”, deparando com algumas das peças que faltavam no quebra-cabeças posto diante de minha sensibilidade, desde o momento em que assisti ao filme...
O diretor de “Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro”, ao defender-se apaixonadamente, naquelas páginas, da “acusação” de haver assinado documento em favor da candidatura de Dilma, tratava de me explicar, por linhas transversas, aquilo que ainda não me ficara claro...Ora, não é possível que o cineasta não haja pensado – depois de fazer o filme que fez – na possibilidade de seu nome haver sido incluído ali por algum participante – registre-se que ele teve acesso à lista original, sem o seu nome - de espécie de jogo duplo... Afinal, a publicidade negativa para Dilma a partir do fato seria praticamente garantida... Muito boa ideia no sentido de plantarem a dúvida a respeito do apoio de várias outras personalidades cujos nomes constavam da mesma relação...
E, pode ser que esteja errada, mas, pelo tom incisivo das perguntas feitas ao cineasta, parecia que o jornal, insatisfeito por haver sido“obrigado” a veicular a notícia de apoio tão significativo, como os de Chico Buarque de Holanda e Leonardo Boff, entre outros, queria encontrar uma maneira de diminuir o impacto positivo da notícia que não pudera deixar de dar...
Pelo que conheço de Marcelo Freixo – inspiração para o personagem Fraga – imagino que o deputado haja ficado satisfeito com o “votocrítico” concedido por seu partido, o PSOL, à candidata do PT... Mas José Padilha defendeu-se da possível vinculação de seu nome a ela como se a defesa fosse da acusação de um crime... O fato é que é incompreensível que ele não tenha percebido o quanto faz política, ao afirmar que, não querendo “politizar seu filme”, e não acreditando em qualquer dos candidatos em disputa, permaneceria, sem aderir “a candidato algum nesta eleição pelos motivos explícitos em Tropa deElite 2”... ( Infere-se, da referida matéria, que tais motivos seriam, segundo o cineasta, o fato de os dois partidos, nestas eleições, não terem política de segurança pública. )
Pergunto: reduzir significativamente a pobreza em um país como o nosso, como vem fazendo o governo Lula, não seria, de alguma maneira, ter uma “política de segurança pública”?
Ora, ora, ora, então, sempre que não tivermos o candidato ideal, cruzaremos – cega, interesseira, competitiva, orgulhosamente, ou porqualquer outro motivo - os braços, ao invés de apoiarmos, aquele melhor possível?
Uma das perguntas feitas a Padilha pelo Globo, em relação à pressão que ele teria sofrido para assinar o documento, foi: “E em nenhuma conversa chegaram a dizer abertamente ou a insinuar que, caso não assinasse, você ou o setor de cinema poderia enfrentar problemas com o governo, problemas de verba, de financiamento de filmes?”
Bem, uma vez que o jornal dá a ideia, não posso deixar de desejar perguntar ao cineasta se, por outro lado, ele não usaria de toda essa veemência para se defender da acusação de haver assinado a tal lista em função de espécie de cobrança do Globo, que, de seu lado, parece também bastante interessado no sucesso de “Tropa de Elite 2”...
Observemos ainda o quanto pode ser curioso pensar que a Mídia focalizada criticamente pelo filme é aquela cujo responsável, em sua total omissão diante de trágicos fatos envolvendo a política estadual, declara sobre o governo: “ele é nosso parceiro”.
E não é justamente isso o que a Rede Globo vem tentando nos convencer que está a nos ameaçar caso o presidente Lula/Dilma resolva investir na redução do poderio das empresas de Comunicação? ( Ali, devem haver gostado bastante do filme... )
Como se relacionamentos promíscuos pudessem se estabelecer automaticamente e não por escolha de ambas as partes...
Pois não seria justamente o raciocínio capitalista viciado no desejo de lucrar ilimitadamente aquele mesmo que acaba por levar tantos a crerem que, diante de qualquer redução de “ganhos” - provável em qualquer diminuição de poder -, qualquer pessoa física ou jurídica esteja disposta a corromper-se e a corromper?
Obs. 1) Certamente é trágico constatar que nosso povo, além de possivelmente submetido, durante as eleições, à manipulação a ele imposta por candidaturas milionárias ( com o apoio da mídia? ) - bancadas por interesses privados, quiçá estrangeiros -, vê seu direito ao voto também perversamente manuseado por outro tipo de bandido.
Diante desse quadro aterrador, devemos pensar que, apesar de estar claro que grande parte dos brasileiros ainda precise amadurecer politicamente ( o que é de se esperar em um país recém-saído da ditadura e no qual ainda tem lugar tanta injustiça ), não podemos desmerecer nosso povo por isso. Ou corremos o risco de fortalecer aqueles que ( vide texto “Capitalismo: uma história de amor”, julho/2010 ) desejariam a ele negar o direito de votar.
Afinal, se o povo acaba sendo a grande vítima das próprias “escolhas”, não pode mesmo sofrer qualquer castigo...
Não foi outra senão essa a grande descoberta, a grande conscientização de Nascimento ( o processo de ampliação da consciência desse personagem, em suas idas e vindas, até espocar no ponto sem retorno da vida dedicada à busca de um mundo melhor para todos, é, semdúvida, o ponto alto do filme. Salve Wagner Moura! ). Nascimento fora treinado, como de resto policiais ainda parecem sê-lo no Brasil, para lidar com um mundo totalmente dividido: o “mal” preto e pobre e “burro”, de um lado, e o “bem” branco e rico e “bem educado”, de outro... Matar em "defesa" desse último grupo era parte da programação dentro de Nascimento... Aconteceu, porém, que ele acabou percebendo, a sua volta, a antiga e "legalizada" exploração do homem pelo homem... E Nascimento se percebeu muitas vezes a serviço de criminosos engravatados ( na realidade, tais criminosos nem sempre são políticos perversos mas outro tipo de personalidade – vide no blog “Respeitabilidade e Autoengano”, abril/10 )... Nascimento compreendeu, enfim, de forma global, toda a situação da qual ele também era, de certa forma, vítima. Acordou.
Tão bom se despertássemos todos e nos tornássemos capazes de desejar ardentemente um mundo melhor para todos!
No entanto, o caminho nessa direção parece ser longo...
Ah!, o ser humano... Tanta energia, tanto tempo dedicados ao ego, à vã satisfação dos desejos de um corpo que apodrece a olhos visto, ainda quando submetido a todas as plásticas possíveis e imagináveis...
Imaginem que, diante da atual crise mundial, que só se agrava, a conclusão de especialistas, segundo o jornalista Luiz Antonio Costa, em artigo recentemente publicado pela revista "Carta Capital", é a de que nenhum lado quer ceder a uma negociação que distribua os custos do ajuste: "Todos esperam recuperar ou manter sua própria 'normalidade' à custa dos países mais fracos, assim como, dentro de cada país, banqueiros e empresários tentam manter a sua à custa dos trabalhadores, e parte destes, por sua vez, tenta se proteger expulsando os que estão em condições ainda piores, como os imigrantes sem documentos"...
E é essa mesma estrutura que se repete cotidianamente quando vemos um vizinho agredir o outro; um colega destruir o outro; sempre em nome da competição e do permanente desejo de “lucrar” a qualquer preço...
Graças a Deus, continuo acreditando que tudo seja uma questão de CONSCIÊNCIA e, em nome dela, mais uma vez, lanço mão no blog daquilo que nos fala Michael Moore, em "Capitalismo: uma história de amor...", sobre documento elaborado pelo Citibank.
Ele nos conta que nesse dossiê consta que “os caipiras”não usariam sua força política porque estavam subjugados a outra muito maior. Os ricos contavam era com a ilusão sob a qual vivia cada um daqueles que constituíam os 99% restantes da população de seu país. Ilusão essa que consistia em acreditarem piamente na possibilidade de, se continuassem tentando - através de expedientes muitas vezes nada admiráveis -, poderem um dia usufruir de parte de toda a riqueza, de todos os benefícios e conforto que eles, o 1%, atiravam-lhes na cara todos os dias...
Segundo Moore, a estratégia a ser usada, então, segundo o Citibank, deveria ser continuar a fomentar essa crença, continuar colocando “a cenoura à frente dos caipiras”, para que eles continuassem puxando a carroça. Dispostos a não reclamar das posturas erradas, porque dispostos, aqui e ali, a errar também...
Assim, a verdade é que, combatendo dentro de si mesmo qualquer impulso no sentido de reproduzir os valores capitalistas concentrados basicamente na ganância, na competição, no consumismo desenfreado e na vaidade desmedidas ( em seu nome, do que o homem não tem sido capaz?), o homem consciente ( de qualquer classe social ) já terá feito a sua parte, e poderá disso se orgulhar, a ponto de poder suportar melhor a espera pela transformação de nossa sociedade que, segundo vaticina Nascimento, "sobre" Brasília, infelizmente, "vai demorar".
2) A primeira impressão é a de que “Tropa de Elite 2...” é um ótimofilme... Um filme, ou um livro, qualquer história, enfim, é sempre um recorte do todo. E, como recorte, ele, não há como negar, é bastante bom. Ótimos atores, ótima fotografia, ótimas sequências... Sem falarque, apesar de ser um filme violento e de muitas locações pouco aprazíveis, o enredo quase não nos deixa desviar os olhos da tela.
Em “Capitalismo: uma história de amor” ( veja aqui o texto sobre esse filme, julho/10 ), o magistral cineasta Michael Moore, numa abordagem bem mais abrangente, aponta o total apodrecimento do SISTEMA capitalista, sem se furtar a mostrar, mais uma vez, os tumores do Capital, do mercado financeiro, do setor privado, além de pincelar a deterioração da Justiça...
Seria interessante se observássemos, paralelamente, como Padilha, por sua vez, tentou, durante todo o filme, apropriar-se do vocábulo “sistema”, como se pudesse ele aplicar-se bem aos entrelaçamentos putrefatos apenas entre o legislativo, o executivo e os bandidos nascidos da pobreza... Em suma: ao recorte por ele apresentado da sociedade em que vivemos.
Não pode.
Assim é que, se “Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro” puder ser compreendido como um filme essencialmente neoliberal, temos de admitir que ele é obra de arte das melhores, sobretudo muitíssimo inteligente, ao focalizar a guerra entre pobres e pobres – milicianos, traficantes( do morro ) e populações das favelas; e ainda por cima dando a impressão de haver colocado "corajosamente" o dedo nos grandes culpados ricos da história: os políticos...
Embora, por um lado, não possamos negar que o recorte feito, com percepção afiada, pelo cineasta José Padilha, toque em questões importantes, a ferirem os melhores valores humanos, tanto em relação aos bandidos pobres, quanto aos bandidos “ricos” - políticos - por ele focalizados, precisamos frisar que percebemos, por outro lado, que o filme oculta algo - e que suponho seja o como o setor privado (também o capital estrangeiro? ) pode se articular ao poderio da grande imprensa ( quarto poder ) e à seletividade punitiva do poder judiciário – quadro delineado por Moore -, na constituição da trágica sociedade em que vivemos.