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quinta-feira, 16 de julho de 2009

Sobre as COTAS

Sabemos que a questão das cotas passa diretamente pela culpa histórica.
Na verdade, acredito mesmo que, para superarmos qualquer trauma sofrido pela humanidade, ainda quando punidos seus agentes imediatos, tenhamos de tomar a culpa como algo amorfo, e procurar por ela responder de maneira a envolver a sociedade como um todo.
Sabemos também que a situação pouco privilegiada da maioria dos negros em nosso país é decorrente da exploração sofrida por eles durante a escravidão.
Cada cidadão brasileiro, branco, tomado individualmente, não é culpado de coisa alguma, sendo, no entanto, enquanto parte da humanidade, solidariamente responsável pelo resultado das ações históricas que culminaram com os procedimentos desumanos relacionados aos abusos a que foram submetidos tantos seres humanos, inclusive depois da abolição da escravatura.

Entretanto, não consigo me convencer de que as cotas sejam de fato a melhor forma de darmos início à justa compensação aos espoliados da História.
Até porque, como professora, tendo a acreditar que o fato de se ter 20 alunos dentro de sala apresentando alguma dificuldade no que diga respeito, por exemplo, à leitura e compreensão de textos complexos implicará em atraso no desenvolvimento das aulas e, em se tratando do ensino superior, em prejuízo da qualidade do curso e de todos os profissionais ali formados. Justamente porque é provável que isso sequer reflita nas notas desses alunos que, via de regra, são computadas de acordo com a conferência daquilo que o professor conseguiu trabalhar, não levando em conta o que ele foi obrigado a deixar para depois.
Dessa forma, se por um lado reconhecemos que tais alunos, por haverem sido privados de seu direito de desde sempre participarem do conjunto do conhecimento produzido pela humanidade, são hoje credores da sociedade; por outro lado, acredito que deva haver outra maneira de ressarci-los, sem que sejamos todos nós, inclusive ainda e mais uma vez os menos favorecidos, submetidos a espécie de reedição do mesmo castigo. E por resultados e tempo incertos, se não são pensadas formas de melhorarmos desde os primeiros anos escolares as condições de ensino-aprendizagem das camadas mais atingidas pela vergonha da “exploração do homem pelo homem”.

Não posso evitar a ideia de que as cotas estejam sendo instituídas simplesmente porque alguma coisa precisa ser feita. E provavelmente nossos governantes e legisladores consideram uma ação como essa, dita afirmativa – embora mais pareça protelativa -, um caminho mais fácil do que se voltar diretamente para a acumulação de capital, com a criação de um imposto específico para a Educação Básica, por exemplo - além de medidas realmente siginificativas no que se refira a um constitucionalmente digno salário mínimo ( não são poucas as donas de casa que pagam mais de 5 mil reais em uma bolsinha, mas se recusam a imaginar um salário melhor para sua cozinheira; e empresários que não se conseguem imaginar lucrando menos e pagando melhor a quem lhes serve tanto... ) . O que, ao acontecer de maneira proporcional e criteriosa, criaria condições indiscutíveis para a implementação de medidas realmente capazes de solucionar progressivamente todos os nossos problemas decorrentes da injustiça social.

Assim é que fico imaginando o que poderia ser feito, paralelamente ao estabelecimento do sistema de cotas, no sentido de que dele pudéssemos abrir mão o mais breve possível. E não consigo imaginar seguimento da sociedade com mais DIREITO e OBRIGAÇÃO de participar diretamente desse momento do que nossos políticos.
Simplesmente porque se, escolhidos pelo povo, sobre o qual pesa toda a amorfa culpa histórica de que falávamos, acabam usufruindo de inumeráveis benefícios, nada mais justo do que, também como nossos representantes, serem obrigados a contribuir com uma porcentagem da verba destinada a seus gabinetes ( que no Brasil parece ser três vezes maior do que nos países de primeiro mundo ) ou de seus salários, com o objetivo de criar condições, a médio prazo, de nossos jovens negros e pobres poderem ingressar por mérito nos cursos superiores de sua escolha.

Essa contribuição, além de destinar-se à melhoria da qualidade do ensino de modo geral, incluindo-se aí uma atenção aos cursos de formação de professores, poderia ter ainda um destino revolucionário.
Fico imaginando a possibilidade de uma MESADA a ser oferecida a cada aluno da rede pública, em pequenas parcelas diárias ou ao final de cada semana de aula ( garantindo sua presença na escola ), para que ele pudesse ter condições similares às de nossos filhos diante da rotina escolar: lanche ( além da merenda oferecida pela escola – por que não? ), material, LIVROS, passagens ( eles não precisam ir apenas à escola ), CINEMA, xeroxes, DIGNIDADE. O que, por acréscimo, ao desonerar suas famílias, acabaria por melhorar expressivamente sua qualidade de vida e, automaticamente, o aproveitamento dos estudantes.
Claro que cada aluno seria observado por assistentes sociais, psicólogos e professores no sentido de se identificar se estaria adquirindo o material necessário aos estudos, bem como andando limpo e alimentado.
E dentre os inúmeros benefícios de tal medida, registre-se que muitos desses jovens deixariam de ser alvo fácil de qualquer grupo que desejasse cooptá-los para o crime, acenando-lhes com dinheiro sujo e prazo de validade estreito. A escolha seria rápida: sua mesada, além de limpa, a acenar-lhes com a possibilidade do futuro.
Registre-se também que ninguém poderia acusar tal medida de “paternalista”, justamente porque é o que seria mesmo ela, uma vez que, em última análise, somos todos e cada um de nós, adultos, de certa forma, "paternalmente" responsáveis por cada criança que nos há de suceder no tempo e na História.

Penso também que não seja possível que pelo menos boa parte dos mais ricos dentre nós não se disponha a oferecer uma parcela de suas fortunas para a Educação Pública. Poderiam até, por livre e espontânea consciência, criar um imposto especial, e eles mesmos teriam o direito e o prazer de acompanhar e fiscalizar a aplicação desses recursos. Afinal, não é possível que já não hajam percebido que, a partir de certo ponto, um pouco mais ou um pouco menos de dinheiro não afeta a vida de ninguém.

Enfim, todos os demais membros da sociedade poderiam ser convocados a prestar serviços à comunidade como voluntários. Especialmente os funcionários públicos, que poderiam dispor, por exemplo, de um ou dois dia por mês para doarem. Sendo que os alunos das Universidades Públicas teriam OBRIGAÇÃO de fazerem pelo menos duas disciplinas eletivas que envolvessem o auxílio a estudantes carentes. A começar pela organização de turmas com aqueles jovens que já pudessem se inscrever nos concursos vestibulares, incluindo-se nesse projeto espécies de clubes de leitura e discussão das obras mais significativas da literatura universal.
Tudo isso porque não podemos perder de vista que, conforme afirma Saviani, "o trabalho educativo é o ato de produzir, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens".

É possível que esteja falando de utopias, mas acredito sinceramente que a implantação dessas medidas permitiria que as cotas ( quer direcionadas aos negros ou aos pobres ) pudessem ser progressivamente abolidas, evitando-se ainda a criação de novas hostilidades. Pois a mudança nos critérios de aprovação nos concursos vestibulares, ao alterar, num primeiro momento, mais significativamente o rumo das vidas de um grupo específico, nada amorfo, de pessoas, pode fomentar novos sentimentos de injustiça.
E é bom lembrar que o envolvimento de todos os cidadãos no explícito objetivo da construção de uma sociedade mais justa acabaria promovendo uma nova e clara consciência do quanto estamos todos concretamente “no mesmo barco”, à medida que fossemos percebendo o quanto a vida melhoraria em todos os sentidos, não só para aqueles que inicialmente enxergamos no lugar dos “ajudados”.
( Obs. Claro que poderiam ser pensadas possibilidades como a de excluir-se de uma vez dos vestibulares para algumas carreiras disciplinas como a Matemática, a Física e a Química.
Ao se formarem no ensino médio, os alunos já dão mostra de haverem adquirido informações e desenvolvido aptidões através dessas ciências suficientes para quem deseja ser um professor de Literatura, por exemplo.
Essa medida sem dúvida tornaria a seleção mais adequada - e justa, ao privilegiar o mérito naquilo que realmente importasse em cada caso.
E ficamos aguardando que melhores e realmente significativas condições de trabalho e salário sejam oferecidas a nosso heróico povo. O que também acabaria obviamente por se refletir na autoestima de cada um dos filhos das famílias mais humildes, e em em seu estado de prontidão para aprender em nossas salas de aula.)