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sexta-feira, 31 de julho de 2009

O MENINO DO PIJAMA LISTRADO ( um dos melhores filmes de todos os tempos )

“A infância é medida por sons, aromas e cenas,
Antes de surgir a hora sombria da razão.”

Do autor do livro que deu origem ao filme, as palavras me fazem lembrar o comentário de alguém sobre meus textos no blog.
Disseram-me que são eles misto de inteligência e ingenuidade. E, olhem, a própria pessoa que o disse parecia não saber tratar-se de uma crítica ou de um elogio...
Mas foi enquanto a ouvia que me dei conta de que estava atingindo o meu objetivo, e me senti gratificada.
Se, como na história do “Fisher King”, o lado ingênuo do rei é o responsável por torná-lo um sujeito inteiro, talvez seja mesmo de ideias esboçadas a partir de um coração aberto e ingenuamente inteligente ( mais do que inteligentemente ingênuo ) que possamos falar daquilo que realmente importa, e a um número maior de pessoas.

Bem, mas voltemo-nos para “O Menino do Pijama Listrado”.
Ouvi alguns comentários sobre o quanto parece inverossímil a possibilidade sugerida pela narrativa desse filme quanto a seus personagens, mesmo os dois meninos de 8 anos, não se darem conta do que de fato ocorria à sua volta, naquele campo de extermínio nazista.
A mim, isso pareceu inteiramente plausível, talvez por ter a impressão de que este não seja essencialmente um filme sobre o holocausto, mas um filme sobre o ser humano.
Assim, não só percebi evidente que as pessoas ali transitavam em um mundo confuso, movediço, a impeli-los para frente, como sinto que, nesse exato momento, muitos dentre nós também parecem não ver com clareza o que se passa a nossa volta...
E continuam... Simplesmente impelidos para ... frente...

Se não concordam comigo, vejamos: em um só dia, gasta-se uma fortuna em um jantar, que sequer é saboreado, devido à dieta ou à conversa sobre negócios; dirige-se um fabuloso carro, que jamais chegará a ser usado em sua potência máxima; veste-se roupas e acessórios caríssimos, que sequer valem o que custam, compra-se coisas que jamais serão usadas e acha-se que o tão pouco que possuem aqueles vislumbrados nas esquinas é “justamente” aquilo que lhes cabe por serem de outra classe social...
Depois, à noite, ao assistir à novela das 9 ( porque classe média alta também assiste à novela das 9 ) , experimenta-se o assombro com o sistema de castas da Índia ou com seus “dalitis” ( “Nossa! Ninguém pode ascender socialmente lá não, é?”), acalentando a lenda de que todos os nossos ambulantes são Sílvios Santos preguiçosos...
Não sei, mas parece que a certeza a respeito da possibilidade de ascensão social de nossos desvalidos acaba sendo a maior força a mantê-los aonde estão...

O fato é que, após assistir a esse filme, cheguei à conclusão de que o nazismo talvez haja sido mais terrível do que vimos supondo. Sob seu comando, não foram cruelmente violentados apenas os judeus. Os próprios soldados alemães e suas famílias, ao serem desumanizados, foram cruelmente brutalizados pela ditadura hitleriana.
Inclusive, fica difícil dizer quais, dentre estes últimos, os mais abusados: se aqueles rapidamente cooptados pelo regime, tendo sua humanidade estraçalhada, ou aqueles que, como a esposa do oficial, permanecem mais tempo distraídos em sua superficialidade fútil – muito parecida com a escolhida por parte de nossas elites como forma de vida - mas inocente até que, ao terem parte da verdade atirada em seu rosto, passam a se debater e se recusam a aceitar as atrocidades que são obrigados a testemunhar.

A propaganda daquele regime de horror, espécie de lavagem cerebral, penetrava fundo e lhes dizia o que eram e como deveriam se comportar, sob pena de serem seriamente punidos.
Como o foi, aliás, no filme, o tenente – mandado para o “front” da guerra, por não haver denunciado a fuga do próprio pai. Por sinal, é justamente quando a “fraqueza” paterna vem à tona que o rapaz dá demonstrações ainda mais duras do que as habituais no trato com os judeus: como se dependesse disso esclarecer sua posição.
Não é muito diferente o que ocorre com Bruno, o filho de oito anos do oficial nazista, ao negar, em dado momento, num impulso de autoproteção, sua amizade com o pequeno judeu Shmuel. Infidelidade, no entanto, que lhe é quase prontamente perdoada, muito provavelmente porque sua vítima podia compreender perfeitamente bem as reações que partem do medo.
Afinal, se se toma uma atitude que revela nossa incerteza quanto a nossa posição, o que nos aguardará do outro lado?

Assim é que as pessoas, de modo geral, parecem mesmo não saber exatamente o que as move, o tempo todo levadas que são por estímulos vários.
E os estímulos que partem da classe à qual se pertence são poderosos, sendo que o parco conhecimento de si mesmo deixa até o mais instruído dos homens à mercê de tal imposição...
Pela mesma razão, esse homem nosso contemporâneo não consegue perceber que nesse momento está sendo travada uma guerra cuja principal arma destruidora é simplesmente não se dar conta do que se passa a sua volta, da mesma forma que não se dá conta do que se passa em seu interior.
Fantoches, em nossa sociedade capitalista, pessoas das classes mais altas parecem soldados poderosos e vitoriosos, batalha após batalha, contra aqueles que já nasceram perdedores...
Acontece que nessa guerra, como na orquestrada pelo mais louco fascista de todos os tempos, é preciso coragem para se recusar a dela participar. E quem não encontra essa coragem dentro de seu coração ingênuo ( todos o têm em algum lugar ) acaba funcionando mecanicamente na destruição da sociedade que pensa construir.

Não sou grande conhecedora do pensamento marxista, mas aprecio principalmente a possibilidade de, através dele, podermos prever o que esperar enquanto sociedade fracassada. Bom seria se pudéssemos nos adiantar ao caos em busca de melhores condições de vida para um número maior de pessoas...
Outro dia, estava revendo uma das passagens que mais me marcaram na doutrina de Marx, sem dúvida a que se refere ao fato do germe da destruição do capitalismo se confundir com o próprio sistema. Imagem que remete à mesma lógica da contradição do nosso inconsciente...
Sempre compreendi tal passagem como uma referência ao fato de que algum dia nossas classes subalternas não suportariam tantas privações e se lançariam, força unida, em busca do que considerassem delas.
No entanto, com toda a organização demonstrada por alguns setores da sociedade, não consigo vislumbrar sequer de longe nossas massas sentando-se às mesas do Antiquarius enquanto discutem os próximos passos para a expropriação dos meios de produção.
Talvez pelo mesmo motivo, não sei, alguns “atrevidos” andem alardeando que Marx simplesmente errou em suas previsões.
De qualquer forma, se uma ditadura do proletariado propriamente dita não se avizinha, parece que o tal germe dentro do sistema está no estágio da multiplicação, prestes mesmo a levar-nos a uma implosão...
O impressionante é que os sintomas fatais acenando para isso não aflorarão com a tomada do poder pelos trabalhadores. Simplesmente porque a destruição do capitalismo talvez esteja sendo gerada literalmente dentro dos ventres de nossas classes mais abastadas.

A menina na novela das 9, ao se ver oficialmente “roubada” pelo tio, resolve passar para o lado da bandidagem propriamente dita – diga-se de passagem, grupinho todo formado por jovens bem arrumadinhos... Enquanto isso, sua mãe passeia em “luas de mel”...
Não é novidade que a rebeldia exacerbada, a violência e a drogadição de nossos jovens das classes mais altas muitas vezes é reflexo inconsciente do desprezo pelo estilo de vida escolhido por seus pais.
Não existem aqui judeus barbarizados. Mas existem pobres desprezados e empregados humilhados ( inclusive submetidos da mais simples à mais sofisticada prática de assédio moral ), explorados, privados de dignidade ou simplesmente cooptados - sem falar nas minorias agredidas e nas externalidades despejadas pelas grandes corporações no seio da sociedade como um todo - pelos pais desses jovens no exercício de suas funções. Existem filhos deixados aos cuidados do dinheiro e de tudo que possa ele comprar, enquanto seus pais se distraem com seus negócios confusos e muitas vezes além da fronteira de qualquer ética. Existem filhos esquecidos com suas questões e curiosidades sobre o mundo e que não podem conversar com sua mãe sobre o filme que acabaram de assistir porque ela, quando volta das compras, precisa dormir ou ir para a aula de ginástica...

Fico pensando, então, que, se o ser humano tende a se movimentar sonambulicamente quando não está preparado para compreender ou se posicionar diante do que o rodeia, uma das mais fortes armas a garantir o avanço do capitalismo selvagem ( e, claro, seu intrínseco colapso ) talvez seja a distração. Muitos negócios a fechar, muitas coisas a comprar, muito turismo a fazer ( Kant e Carlos Drumonnd de Andrade pouco saíram do lugar onde moravam ), muitos cuidados com o próprio corpo a empreender...
Pois não sobra tempo sequer para um pouco de contemplação, para o autoconhecimento... E bonecos, cada vez mais facilmente lançados para fora de si mesmos, a única coisa que parece restar à grande parte dos homens hoje é representar o melhor possível o “script” que lhe derem. E se deixarem lançar para... frente...

Em “O Menino do Pijama Listrado”, um dos melhores filmes de todos os tempos, a solidão de uma criança faz com que ela se volte, paralelamente, para si mesma e para o mundo. E ela se choca.
O filme é a história de sua perplexidade, ainda que não exatamente consciente, diante das inconsistências do ser humano e das estranhas ações do pai, a quem gostaria apenas de amar e admirar.
Parece que a cada vez que alguém, por escolha ou contingência, se vê consigo mesmo, é obrigado a tentar responder às únicas e verdadeiras questões da existência humana. Para as quais, ainda que jamais nos deparemos com respostas claras e definitivas, deveríamos estar permanentemente disponíveis, numa espécie mesmo de construção de nossa própria consciência...

No “bônus”, o roteirista fala sobre a possibilidade de trabalhar-se o preconceito, através da exibição desse filme nas escolas. Talvez devêssemos mesmo seguir sua orientação, pois somos uma sociedade tremendamente pre-con-cei-tu-o-sa. E o preconceito entre nós se evidencia principalmente em nossa passiva aceitação de que as diferenças entre as classes sejam simplesmente estratosféricas. Como se agíssemos e pautássemos nossas vidas previamente acreditando não haver outra maneira de ser para esse estado de coisas, e devêssemos aproveitar o fato de estarmos do lado do “conforto”.

Quando Bruno, o pequeno filho do oficial alemão, sentindo-se em “dívida”com o amigo Shumel, resolve ajudá-lo a procurar pelo pai e, vestindo-se como o judeuzinho, cava um buraco para atravessar para o outro lado, onde acaba morrendo - de mãos dadas com o companheirinho - numa câmara de gás, pensamos: talvez seja sabendo que do outro lado também estamos nós que perderemos o medo de dizer não àquilo que nos repugna. Ou de dizer basta àquilo que, por mais bonito, cheiroso, brilhoso, gostoso ou caro não está nos satisfazendo, e tentar melhorar o mundo antes que nossos filhos, inconsciente e reativamente que seja, acabem tentando fazer isso arriscando, literal e metaforicamente, a sua ( nossa ) própria pele.
A menina, na novela, e o menino Bruno passam para o lado ao qual os seus pensam não pertencer. Boa figura para o fato de que somos enquanto humanidade essencialmente permeáveis uns aos outros, resistamos ou não a isso.
Fico a pensar sobre o quanto seria reestruturador de nossa sociedade que nossos jovens, orientados para dentro de si mesmos, se percebessem, quando fosse o caso, conscientes de que não concordam com o que fazem seus pais – imaginem o poder transformador do desprezo lúcido de um filho -, sem precisar imitar seu comportamento ou se confundir com suas vítimas.
Lembremos de que o tio da menina, na novela, não passa de um ladrão perfumado.
E a família do meninozinho, no filme, ainda que disso não tivesse consciência ( o disfarce proporcionado pelo dinheiro e pelo poder também ilude nossas elites ), era tão - e, no sentido da desumanização, até mais - vítima e fora tão privada pelo regime nazista da dignidade humana quanto aqueles que, do outro lado do arame farpado, passavam seus últimos dias em terríveis pijamas listrados.
SHEILA MARIA MADASTAVICIUS